Pensar no futuro da Argentina, hoje, é paradoxalmente olhar para trás. No domingo 27, Alberto Fernández, do Partido Judicialista, foi eleito como novo presidente do país, ainda no primeiro turno, derrotando o atual mandatário Maurício Macri. A vitória já era esperada e Fernández obteve 48% dos votos. Com a nação engolida por uma crise econômica em que se somam inflação, dívida externa e juros recordes, qualquer nome eleito teria obstáculos mais do que suficientes para ultrapassar. Fernández, no entanto, é peronista e o passado pesará nesse processo. Se isso não bastasse, a sua vice é ninguém menos do que Cristina Kirchner, ex-presidente de 2007 a 2015.

Quando assumiu, em dezembro de 2015, Macri estava diante de um país endividado e com déficits tanto no que arrecadava internamente como no comércio internacional (“déficits gêmeos”). Assim, optou por reformas graduais. Como cerca de 90% da dívida pública é fixada em dólares, a Argentina está exposta a variações do mercado internacional. O valor da dívida saltou para US$ 280 bilhões. A solução temporária foi procurar o Fundo Monetário Internacional (FMI), que emprestou US$ 57 bilhões. As contrapartidas, porém, seriam reformas mais duras, como juros altíssimos (agora em 78%) e cortes maiores em gastos públicos. Não bastasse, a inflação continuou a subir, atingindo 53,5% ao ano.

Diante de números recordes, Macri congelou preços até outubro, numa ação que analistas definem como eleitoreira. Mesmo assim, a economia enfraquecida desgastou a imagem do presidente. A previsão para 2019 é que o PIB fique negativo em 3,1%. Um terço da população vive hoje abaixo da linha da pobreza.

Após o default na crise de 2002, a Argentina ficou fechada ao mercado de capitais por 13 anos, incluindo o período de Cristina Kirchner e as políticas de Macri que permitiram que o país voltasse a se abrir. O mercado internacional gostava dele — apesar de sua inabilidade de conter a crise — e o próprio FMI se dispôs a ajudá-lo com um novo empréstimo. Tudo agora pode mudar, já que ainda na campanha Fernández e Kirchner se mostraram contra o empréstimo e as condições do fundo para liberar o dinheiro.

Após a vitória, Fernández até se predispôs a iniciar um novo diálogo com o FMI. Porém, é consenso entre analistas econômicos que, fosse ele ou Macri o próximo presidente, a Argentina não teria condições de honrar o acordo. Já quanto ao que virá, analistas divergem. Uns acreditam que Fernández pode indicar um nome pró-mercado para o Ministério da Fazenda, numa tentativa de acalmar os ânimos e conseguir uma nova rodada de negociações. Outros acreditam que a volta do peronismo é a gota d’água — e que o organismo internacional não irá dar mais oportunidades. Isso levaria o país, já quebrado, a ficar ainda mais endividado, o que espantaria de vez os investidores estrangeiros.

É claro que isso depende de qual será a política econômica do novo presidente, ainda não anunciada, e se ele trará de volta uma agenda fiscal mais frouxa e com mais subsídios para a população. Somada a essa incerteza, existe a dúvida quanto ao grau de influência que Cristina Kirchner terá no novo governo. Fernández e ela não são da mesma ala do partido e a ex-presidente é considerada mais radical, o que pode gerar embates entre os dois. Na Argentina, porém, o vice-presidente também é presidente do Senado e ela poderia utilizar a via legislativa para exercer poder.

TROCA DE FARPAS Fernández celebrou a carta que recebeu de Lula com uma selfie dizendo “Lula Livre”. Bolsonaro classificou o gesto como um “afronto à democracia brasileira” (Crédito:Mauro Pimentel | divulgação)

Ainda que tente esse camimho, a tarefa não será fácil. “As duas casas do legislativo estão altamente divididas entre o peronismo e a base de Macri”, afirma Livio Ribeiro, economista da Fundação Getulio Vargas. Dos 257 assentos na Câmara, peronistas terão 120 e “macristas” 119. No Senado, dos 72 assentos, 37 foram ocupados por peronistas e 29 por aliados a Macri. “Será muito difícil conseguir governabilidade e o presidente terá de negociar com a nova oposição.”

Fora das fronteiras há mais riscos. A vitória de Fernández incomodou Jair Bolsonaro. “Venceu o pior. Não pretendo parabenizá-lo”, declarou o presidente brasileiro durante sua viagem pela Ásia. “Agora, não vamos nos indispor. Vamos esperar o tempo para ver qual a posição real dele na política.” O tom, porém, caiu por terra quando Fernández postou uma foto comemorando uma carta de parabéns do ex-presidente Lula, fazendo um gesto que simboliza Lula Livre. “É um afronto à democracia e ao sistema judiciário brasileiros. Ele está afrontando o Brasil de graça”, completou Bolsonaro.

BREXIT A Argentina é o principal parceiro comercial brasileiro na América do Sul. Com a crise por lá, nossas exportações caíram 39% entre janeiro e julho deste ano, na comparação com o mesmo período do ano passado. Antes mesmo da vitória de Fernández, já circulava nos bastidores de Brasília a ideia de o Brasil abandonar o Mercosul, caso a Argentina assumisse uma visão protecionista. Não será fácil, porém, romper o acordo — movimento já apelidado de “Braexit” ­— e essa decisão implica em altos custos para a economia nacional. Mas o tom contencioso preocupa. “As tensões entre Fernández e Bolsonaro representam um risco para as perspectivas da Argentina e do Brasil”, diz Nikhil Sanghani, economista da consultoria britânica Capital Economics. Infelizmente, as perdas comerciais para o Brasil tendem a continuar diante das incertezas no vizinho.