Ao completar 12 anos na Volkswagen, o então supervisor de qualidade Heinrich Plagge aguardava ansioso por uma nova promoção. Já passara por diversos cargos desde seu ingresso no setor de importação de peças, em 1960, e crescera gradualmente com o avanço da subsidiária. Em 1972, a empresa já contava quase 30 mil funcionários e ostentava o posto de uma das maiores companhias privadas do Brasil. A marca da produção do Fusca de número 1 milhão, em março, era uma prova de que os negócios da multinacional em nada se abalaram com o golpe militar de 1964 e de que o funcionário, fluente em alemão, tinha razões para almejar o progresso na carreira. Os planos de Plagge, porém, não duraram muito. Começaram a esmaecer meses depois com uma ligação de um colega da Segurança Industrial do grupo, que lhe questionou:

– Plagge, vou conversar um assunto altamente secreto e super perigoso com você. Queria que respondesse sim ou não, sem entrar em detalhes. Só responda sim ou não. Estamos à procura de um chefe de qualidade, mas sabemos que não é você. Ele foi identificado como parte de um grupo de subversão da fábrica. Você conhece alguém de sobrenome Conrado?

Difícil foi esconder o nervosismo ao escutar o seu nome de guerra, usado apenas entre os membros da célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que atuava clandestinamente na fábrica desde 1964. Plagge respirou e respondeu:

– Não tenho a mínima ideia.

Naquele dia, chegou em casa apavorado e comunicou a mulher Neide Rosa Plagge de que o pior estava por vir. Avisou-a que qualquer ato suspeito significaria a sua prisão. O destino estava selado. Ao retornar à fábrica, no dia seguinte, foi convocado a comparecer na sala do chefe, que comunicou:

– Plagge, esses senhores precisam te levar porque você está preso por questões de subversão.

Eram policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), encarregados de conduzi-lo de dentro da fábrica à prisão. Enquanto ele era recebido na delegacia com tapas no rosto, um funcionário da montadora se dirigia à casa dele para comunicar Neide que o colega viajara a serviço. Ela o questionou – o marido não levou mala de viagem, nem documentos para isso –, mas o funcionário desconversou. Rejeitou a oferta de entrar para um café e partiu. Foi o suficiente para que ela desconfiasse da prisão, que só foi confirmada dias depois graças à cortesia de um carcereiro numa de suas peregrinações pelos órgãos da repressão política da ditadura militar.

Heinrich Plagge foi preso em 1972 dentro da fábrica de São Bernardo do Campo:

O que o mensageiro da montadora chamou de viagem era, na verdade, uma visita aos porões do Dops, com duração de cerca de três meses. Trata-se de uma história que Plagge, aos 78 anos, conta hoje com detalhes, desde como foi introduzido ali ao pau-de-arara, tradicional método de tortura da época, até a maneira como a máquina de choques era ligada no pênis e nos mamilos. Nem sempre foi assim. Por muitos anos, o ex-funcionário guardou para si o que viveu nos tempos de chumbo. Só recentemente é que ele começou a revisitar mais abertamente o passado. “Por que eu fui pego? Porque eu tinha a cabeça diferente, acreditava num país um pouco melhor”, afirma Plagge. “Me sinto traído, porque fui condenado a dois anos de prisão, sendo um funcionário exemplar, que nunca teve ausência por falta disciplinar.”

Assim como ele, a Volkswagen resolveu quebrar o silêncio e jogar luz sobre fatos obscuros da empresa entre 1964 e 1985. Na quinta-feira 14, a companhia admitiu o envolvimento com o regime militar. “Deixo aqui, em nome da Volkswagen, expressado que lamentamos profundamente os episódios que possam ter ocorrido naquele momento histórico em desacordo com os valores da empresa”, afirmou o presidente do grupo na América do Sul, Pablo de Si. A companhia anunciou a colaboração com entidades de direitos humanos e inaugurou uma placa na fábrica de São Bernardo do Campo (SP) em homenagem às vítimas. O anúncio marcou a divulgação de um relatório independente contratado pelo próprio grupo alemão para investigar o tema.

A montadora é a primeira grande companhia a revisitar a participação nos anos de chumbo no Brasil. Como é o primeiro caso de apuração sobre eventual responsabilização de uma empresa na ditadura, tem uma importância histórica de servir de referência para futuros processos em outras organizações. O relatório elaborado pelo historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, afirma que a subsidiária brasileira foi “irrestritamente leal” ao regime e sugere benefícios econômicos obtidos pelo grupo com a supressão de liberdades na época. “Devido ao controle salarial e dos sindicatos pelo governo, os salários ficaram em um nível bem mais baixo do que em uma democracia pluralista com livre negociação salarial e direito a greve”, diz o documento. “A Volkswagen do Brasil e, em última instância também a Volkswagen AG, aproveitaram para si a suspensão dos direitos trabalhistas elementares”, afirma o relatório. O trabalho conclui que a vigilância da Segurança Industrial facilitou a prisão de ao menos sete funcionários, levou à demissão de empregados envolvidos em atos sindicais e abasteceu “listas sujas” com nomes de ativistas. As listas eram compartilhadas com autoridades e outras empresas.

Os achados do historiador alemão são baseados em documentos internos da montadora no Brasil e na matriz. Eles confirmam as conclusões do relatório feito pelo perito Guaracy Minguardi no inquérito que apura o caso no Ministério Público Federal. “Não restam dúvidas de que a Volkswagen, além de colaborar com os órgãos repressivos também agiu por conta própria, às vezes participando da repressão”, conclui o texto. A investigação do MPF, que motivou a contratação do levantamento na Alemanha, está em fase conclusão. Há três desfechos possíveis para o inquérito: o arquivamento, um processo ou um acordo com a companhia. “Tudo está indicando que o Ministério Público deve aprofundar as investigações”, afirma o procurador Pedro Machado, responsável pelo caso. Especialistas acreditam num acordo como a melhor solução possível. Os trabalhadores perseguidos na época cobram um pedido formal de desculpas e uma negociação mediada pela Procuradoria Geral da República. Eles se recusaram a participar do anúncio da montadora na semana passada e protestaram na porta da fábrica. “A declaração do presidente foi cínica”, afirma Lúcio Bellentani. “Esperávamos que ao menos dissessem para nós estarem abertos ao diálogo.”

Lucio Bellantani foi torturado e preso dentro da fábrica de São Bernardo do Campo em 1972:

TORTURA O caso de Bellentani, de 1972, é um dos mais emblemáticos nos relatórios sobre a Volkswagen. Ele conta ter sido abordado por policiais do Dops armados com metralhadoras na sua bancada de trabalho, sob a supervisão de membros da Segurança Industrial, até ser levado ao Departamento Pessoal da multinacional. Lá, foi interrogado e submetido a pontapés e socos. No Dops, Bellentani foi submetido aos mesmos tipos de tortura que Plagge. Os dois costumavam a conversar por uma fresta entre as celas vizinhas após as sessões de choques e pancadas. A parceria começara na própria Volkswagen, quando o supervisor, que não era submetido à revista, era acionado para ingressar na fábrica com panfletos contendo queixas trabalhistas e denúncias contra a empresa. O material era escondido em fundos falsos de armários e de marmitas, para então ser distribuído em ações planejadas, em locais como banheiros e na linha de produção, por meio dos ganchos das esteiras.

A prisão da liderança da célula do PCB na Volkswagen, que atuou de 1964 a 1972 e chegou a ter 200 membros, segundo Bellentani, traz provas que demonstram a proximidade da empresa com o aparato repressor. Um documento encontrado no Dops cita a investigação sobre o grupo e destaca a importância do “entrosamento entre os agentes e membros da Segurança Industrial da empresa” (leia trecho acima). Num dos depoimentos da época também há a confirmação de que as prisões ocorreram dentro da fábrica e sem mandado. Uma comunicação interna posterior comprova ainda que o andamento do caso foi acompanhado até o fim pela Segurança Industrial.

Numa investigação conduzida neste ano pelas emissoras alemãs de tevê NDR, SWR e o jornal Süddeutsche Zeitung, a equipe encontrou na Alemanha uma comunicação da subsidiária do Brasil informando a prisão desses trabalhadores na fábrica. O contato é destaque no relatório de Kopper, que ressalta a omissão da equipe brasileira em citar a colaboração da Segurança Industrial. Num documentário feito pela NDR e SWR, o então gerente da Volkswagen, Jacy Mendonça, afirma que nunca foi permitida a entrada de militares na fábrica. “Eu não gosto da rotulagem de ditadura militar”, afirma Mendonça no filme. “As empresas viveram um período extremamente positivo. Cresceram 10% ao ano porque havia ordem.” As emissoras alemãs também entrevistaram o então diretor do Dops, José Bonchristiano. Em seu depoimento, ele confirma a colaboração. “A Volkswagen, quando a gente pedia, eles faziam o que a gente determinava.” O relatório de Kopper mostra agora como era a estrutura para fazer esse trabalho. Em 1973, havia na fábrica um integrante da Segurança Industrial para cada 79 trabalhadores, ou mais de 300 pessoas.

Mea culpa: o historiador kopper (à esq.) e o presidente da volkswagen na américa do sul, pablo de si, em inauguração da placa de homenagem às vítimas da época (Crédito:Marco Ankosqui)

Um dos episódios de vigilância gerou outra evidência que corrobora a proximidade da empresa com o regime. Um boletim de ocorrência interno foi encontrado nos anexos de um documento do Serviço Nacional de Informações (SNI), relatando um fato com o funcionário Claudecir Mulinari em 1980. O então ferramenteiro foi convocado pela Segurança Industrial a comparecer a uma sala da fábrica, onde foi interrogado. Na sua bancada, foram apreendidos livros com pensamentos de esquerda, como o Manifesto Comunista, de Karl Marx. “Me repassaram para o pessoal do Dops, que disse que minha prisão ou não ia depender do meu depoimento”, afirma.

Claudecir Mulinari foi interrogado dentro da fábrica e demitido por subversão em 1980:

Nos dez dias seguintes, Mulinari foi obrigado a passar por interrogatórios seguidos numa sala especial na Volkswagen, sem ter pisado no chão de fábrica outra vez. Ele foi demitido em seguida e passou dois anos sem conseguir um novo emprego. Contratado por um banco em 1982 para trabalhar dentro de um posto de uma unidade da Volkswagen, foi demitido cinco dias depois. “O gerente me chamou e disse que eu tinha complicação no Dops”, diz Mulinari. Entre os documentos dos relatórios, há uma série de provas de que a Segurança Industrial da VW abasteceu as “listas sujas”, em especial de empregados envolvidos nas greves do ABC paulista, que projetaram o sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula, nacionalmente. Em um caso, a segurança identificou e fichou 47 pessoas participantes de um piquete.

Em aberto: grupo de ex-funcionários afetados pela perseguição em protesto contra o anúncio da companhia. eles cobram uma postura de negociação (Crédito:Divulgação)

Nos relatórios, há uma pesquisa sobre dois outros temas da época: o financiamento ao regime militar e o papel do comandante nazista Franz Paul Stangl no quadro de funcionários da empresa. Sobre o primeiro, a conclusão é de que os documentos são insuficientes, mas de que a tese de apoio financeiro é bastante provável. Quanto ao funcionário nazista, as apurações mostram que não é possível concluir se a Volkswagen do Brasil sabia do seu passado. Ele foi demitido e enviado de volta à Europa. Ao concluir a sua apresentação em São Bernardo do Campo, o historiador destacou o esforço da montadora e encorajou outros grupos a repetirem o trabalho. “Quem sabe outras empresas possam seguir o exemplo”, disse Kopper.