Tem sido uma “festa danada” – para citar um termo usado de forma pejorativa pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao criticar ida de brasileiros de baixa renda para os Estados Unidos, no período em que o dólar estava a menos de R$ 2 – a presença do público de classes C e D, entre eles muitas empregadas domésticas, nos aeroportos brasileiros. Para decepção do ministro, essa turma continua viajando. E alavanca a empresa de viagens Vai Voando, que apostou no filão de moradores de favelas e comunidades carentes do Brasil e vem faturando alto com isso. No ano passado, a empresa registrou crescimento de 9,7%, com faturamento de R$ 82,3 milhões – 20% dos R$ 410 milhões de receitas do Grupo FlyTour, ao qual pertence. Para crescer pelo menos outros 9% em 2020, serão investidos cerca de R$ 3 milhões.

“A ideia surgiu no momento em que houve o empoderamento da baixa renda, com o estímulo do consumo da população pobre, que começava a deixar a linha abaixo da pobreza e passando a ser consumidor”, diz Luiz Andreaza, diretor de operações e planejamento da Vai Voando. “Percebemos que, naquela época, a ocupação média dos voos nacionais era de 65%. Então pensamos em como ocupar esses 35% restantes por pobres que faziam viagens de longa distância de ônibus. Trocamos os dois dias de viagem ao Ceará [partindo do Rio de Janeiro ou de São Paulo] para um voo de três horas e meia, com um custo não muito diferente na conta final. E a receita vem dando certo.”

O sistema utilizado é simples e vem dos tempos em que Andreaza atuava em empresas também do segmento de baixa renda, como o Baú da Felicidade: parcelar a compra em muitas prestações, antes da aquisição do bem. Quase um consórcio ou, como ele diz, garantir uma viagem ‘pré-paga’ para visitar ‘mainha’ e ‘painho’, aproveitando-se do fato de que 13% dos brasileiros residem fora de seu lugar de origem. Ou seja, o cliente só embarca depois que tudo estiver pago. Por conta disso, dispensa a temida consulta aos serviços de proteção ao crédito, como Serasa e SPC, o que já afugenta muita gente na hora de parcelar algum gasto, fora os que não conseguem comprovar renda por conta da informalidade. O passageiro recebe o carnê, com até 12 prestações, já com a reserva garantida – por meio de acordos com as companhias aéreas, que esticam o prazo para a empresa desembolsar o valor – e viaja após quitar todas as parcelas.

Somente no ano passado a Vai Voando embarcou 110 mil moradores de comunidades carentes em aeronaves para voos nacionais (a empresa não comercializa viagens internacionais). Desses assentos, 8% foram ocupados por empregadas domésticas. Fortaleza foi o principal destino, seguido por Manaus e Recife. O tíquete médio em 2019 foi de R$ 1300, com média de parcelamento em sete vezes. Todas as 326 lojas da empresa estão em áreas carentes e são geridas por moradores das favelas, alguns até líderes comunitários, por meio de franquias de baixo custo. As duas unidades da favela de Paraisópolis, em São Paulo, por exemplo, quinta maior do País, com 100 mil habitantes, garantem receita de R$ 1,8 milhão ao ano. Da Rocinha, no Rio de Janeiro, entram R$ 200 mil nas duas lojas. Lá, já foram cinco unidades, que renderam, em 2015, R$ 3 milhões. “A queda da receita na região tem a ver também com a difícil situação do estado do Rio de Janeiro, que afetou o consumo de boa parte da população”, diz Andreaza.

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A aposta da empresa no turista de baixa renda faz sentido, já que somente moradores de favelas – que somam 13,6 milhões de pessoas – movimentam anualmente quase R$ 120 bilhões, maior que o consumo de países como Uruguai e Paraguai. Os números integram a pesquisa Economia das Favelas, realizada em dezembro pelos institutos Data Favela e Locomotiva. No levantamento, 80% estão otimistas com a vida financeira em 2020. Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, diz que há muitas oportunidades de negócios e modelos de sucesso junto a esse público. “As pessoas enxergam mais a carência do que a potência das favelas”, afirma Meirelles.

A desastrosa fala de Paulo Guedes, menosprezando o direito de ir e vir da população de baixa renda, despertou ações de oportunidade para atrair ainda mais o pobre para o corredor que dá acesso ao avião. Para Andreaza, da Vai Voando, o ministro foi extremamente infeliz na analogia. “Vamos aproveitar para fazer uma ação com esse público, já que um em cada 12 passageiros é empregada doméstica, e promover concurso para que ela possa fazer a viagem dos sonhos. Nós respeitamos o pobre e a empregada porque vivemos do dinheiro deles.” Meirelles, do Locomotiva, concorda. “Falas como essa do ministro acabam aumentando o preconceito com o pobre. A favela é um território de resiliência, onde as pessoas estão acostumadas a viver na crise”, diz. “Todos eles, inclusive as domésticas, têm o direito de ir para onde quiserem”, diz Meirelles.