Caos: manifestantes foram atropelados por blindados das forças armadas leais ao presidente Nicolás Maduro, em Caracas. À dir., os opositores Juan Guaidó (de paletó) e Leopoldo Lopéz pedem apoio à população para tirar Maduro do poder (Crédito:REUTERS/Ueslei Marcelino | REUTERS/Manaure Quintero)

Um movimento súbito da oposição contra o governo da Venezuela mergulhou o país num novo capítulo de tensão em meio ao caos social e econômico local. Quase quatro meses após Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, ter se proclamado presidente interino, em desafio à presidência de Nicolás Maduro, ele tomou a decisão mais ousada até agora: libertou o principal líder oposicionista preso, Leopoldo Lopéz, de sua prisão domiciliar, com a ajuda de militares que abandonaram Maduro, na terça-feira 30. O que se seguiu foi uma onda de protestos violentos, em defesa dos dois lados, com pelo menos dois mortos e 150 feridos, especialmente em Caracas, a capital. A queda do regime parece mais próxima, mesmo com a resistência de Maduro, e deixa os mercados em estado de atenção pelo impacto que o processo pode causar nas cotações de petróleo e na economia global. Abre, também, uma esperança de estancar a ruína de empobrecimento que assola o povo venezuelano.

A Venezuela possui a maior reserva de petróleo do mundo. Cerca de 95% das exportações e 40% do PIB estão ligados à cadeia de óleo, por meio da estatal PDVSA, a maior empresa do país. Tamanha dependência gerou dor de cabeça aos venezuelanos. A estatal não tem conseguido reinvestir na modernização dos equipamentos e na manutenção dos campos. Em 2014, com a crise do preço do petróleo, as receitas da companhia despencaram e, num efeito cascata, os investimentos diminuíram ainda mais. Hoje, o número de barris produzidos por dia, que já foi de 3 milhões, está em seu nível mais baixo: 1 milhão. Mesmo com a recente alta no preço do petróleo, falta capacidade para responder na produção.

Como a estatal é peça central no xadrez político local, ela gera preocupações no mundo, uma vez que as decisões do país afetam o mercado como um todo. Esse será um tema central para a Venezuela, independentemente de quem vencer a batalha pelo poder. “Não há interesse de interromper a produção da PDVSA por parte de nenhum dos lados. A empresa sustenta o país”, afirma Carlos de Souza, especialista em exploração de petróleo na América Latina da consultoria britânica Oxford Economics.

O custo do petróleo é um foco de tensão no Brasil, com a pressão de caminhoneiros em relação ao preço do diesel. O presidente Jair Bolsonaro, que apoia os oposicionistas venezuelanos, aproveitou a crise recente para sinalizar que o preço do combustível poderia subir no Brasil em decorrência das turbulências no vizinho. A ruína petrolífera venezuelana vem sendo precificada há meses. “O mercado já antecipa uma participação não expressiva da PDVSA na oferta mundial há muito tempo”, afirma Souza. “A produção deve ficar menor do que 1 milhão de barris por dia.” Em abril, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), formada pelos maiores produtores globais e que inclui a Venezuela, reportou a menor produção em quatro anos. Com isso, as cotações já subiram mais de 30% este ano.

Brasil de olho: o presidente Bolsonaro, que apoia Guaidó, considerou que o Brasil participasse de uma intervenção militar na Venezuela, mas voltou atrás (Crédito:Ricardo botelho/AFP)

ECONOMIA EM RUÍNAS O problema econômico da Venezuela, obviamente não se restringe à dependência do petróleo. Ao chegar ao poder, em 1999, Hugo Chávez nacionalizou centenas de empresas e indústrias. Passou a subsidiar importações, num movimento que acabou atrapalhando mais do que ajudando, já que o setor privado substituiu a produção local pelas importações mais baratas. Além disso, o governo adotou uma política de controle de preços, segurando artificialmente a inflação. Mais recentemente, quando o valor da moeda começou a cair internacionalmente e os preços hiperinflacionaram, o governo provocou distorções de valores e imprimiu dinheiro, piorando a crise. O resultado é o assustador índice de 1.000.000% de inflação, de acordo com uma estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI). Na prática,
o peso venezuelano não tem mais valor e foi substituído pelo dólar em compras no dia a dia. O fato é que a miséria bate à porta dos venezuelanos. Com a economia em queda livre, mais de 40% não têm emprego. Cerca de 3 milhões já deixaram o país.

O principal líder da oposição venezuelana até janeiro deste ano não era Juan Guaidó, e sim, Leopoldo Lopéz, ex-prefeito de um dos distritos que compõem a capital Caracas. Lopéz é fundador de um dos principais partidos anti-chavismo, o Vontade Popular. Em 2014, quando a Venezuela mergulhou em mais um de seus maiores episódios violentos entre governo e oposição, Lopéz foi condenado a 14 anos de prisão domiciliar, acusado de incitar tumultos. Ao ser liberado pelos militares que apoiam Guaidó, ele pediu que a população fosse às ruas e que as Forças Armadas se voltassem contra Maduro, cujo governo sobrevive graças ao apoio que tem do alto comando militar venezuelano.

“A julgar por como ele trata as Forças Armadas, Guaidó esperava que um exército unido expulsasse Maduro”, analisa Consuelo Cruz, professora da universidade americana Tufts. “A situação está muito próxima de uma guerra civil. A questão-chave é: de que lado os militares ficarão?” Por enquanto, o plano da oposição parece não ter dado muito certo. Os protestos pelo país foram oprimidos pelas forças leais ao governo Maduro e, ao fim da terça-feira 30, até Lopéz já tinha se refugiado na Embaixada da Espanha, em Caracas, onde pediu asilo.

QUEBRA CABEÇA MUNDIAL Na cena internacional, o tema também suscita divisões. Desde janeiro, os EUA, a União Europeia e grande parte de países da América Latina, incluindo o Brasil, apoiam Guaidó. A Rússia e a China, numa demonstração de força contra a influência americana, defendem Maduro. “Se algum desses três grandes atores internacionais intervir diretamente, a situação será automaticamente pior”, diz Antonio Carlos dos Santos, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. “Ambos os lados terão como se armar, de forma como acontece na Síria.” A retórica acalorada entre EUA e Rússia demonstra isso. O secretário de Estado americano, Mike Pompeo, chegou a dizer que, diante dos primeiros protestos, Maduro havia planejado fugir para Cuba. Os americanos também informaram que já têm “cenários traçados para o que fazer militarmente”. O governo russo, por outro lado, acusou os americanos de “ingerência”, no que chamou de “assuntos internos de um país soberano.” Maduro apareceu em público para dizer que Pompeo estava mentindo.

Com o clima quente internacionalmente, o presidente Jair Bolsonaro manteve o apoio a Guaidó e inicialmente deixou dúvidas sobre a hipótese de participação brasileira numa intervenção militar brasileira. “É muito difícil. Não vou dizer que é zero, mas é próxima de zero”, afirmou, em entrevista à Band. O patrulhamento na fronteira venezuelana em Roraima foi reforçado e 25 militares venezuelanos pediram asilo ao Brasil. Na quarta-feira 1º, Bolsonaro descartou qualquer chance da presença brasileira no local. Coincidência ou não, o tom abaixou depois que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, alertou que, para o Brasil entrar em qualquer intervenção militar, o Congresso precisaria aprovar. Independentemente do tema militar, o Brasil é interessado direto no conflito venezuelano. Não só pela questão dos combustíveis. Uma solução favorável poderia reduzir a tensão na fronteiras e reabrir um mercado que já foi um dos dez maiores na pauta de exportações brasileiras.