Já diria um frasista meio clichê: o universo (e a cidade de São Paulo) está em constante mutação. Está mesmo, mais ainda quando o lugar analisado é a República, distrito do centro que vivencia um boom de novos bares, restaurantes e lojas nos últimos anos.

Basta viajar alguns dias que a publicitária Pollyanna Mattos, de 35 anos, já encontra alguma novidade na vizinhança. “É engraçado. Tem até um choque do ‘nossa, esse é novo’. Entre moradores, a gente fala que toda semana tem um lugar novo ou algum foi reformado.”

Dentro dessas mudanças, predominam locais frequentados por um público jovem adulto, de classe média e descolado. Mais de 30 estabelecimentos com esse perfil abriram no distrito em dois anos, especialmente no quadrilátero formado pelas Ruas Major Sertório, Rego Freitas, Consolação e a Avenida Ipiranga. Há, ainda, os grafites, as intervenções urbanas e as reformas de locais antigos.

Pollyanna mora há cinco anos na República e, cada vez menos, se desloca para a Vila Madalena e Pinheiros, na zona oeste, para sair com amigos. “Desde que o centro deu essa guinada, quase nunca saio daqui”, diz. “Mudou muito, é outra vivência. Antes tinha muito serviço, mas não tinha tanta opção de lazer, de cafés, acabava indo para fora.”

Luiz Felippe Mascella, de 24 anos, observa três públicos no Rêgo Bar, espaço aberto há uma semana, do qual é sócio. São trabalhadores do centro em happy hour, moradores e frequentadores atrás da vocação boêmia e gastronômica da região. Para ele, a valorização da região é uma oportunidade.

“Estava fugindo um pouco do spotlight de Pinheiros. O futuro é no centro”, aponta. “A maioria dos lugares respeita a arquitetura, a história do bairro. Vejo muito essa outra pegada, de se aproveitar muito de pequenos espaços para montar coisas superlegais, com a cara daqui.”

Entre bares, sorveterias, lojas, lanchonetes, restaurantes e baladas, há quem já emende dois passeios em um só. A bancária Viviane Tavares, de 35 anos, por exemplo, jantou na hamburgueria Sertó anteontem e, depois, comemorou o aniversário de um amigo no karaokê ao lado. “Geralmente a gente vai no centro, antes disso (há um ano e meio) era mais Pinheiros, Vila Madalena e Tatuapé (onde o grupo trabalha).”

Rodrigo Basso, de 31 anos, considera que a proximidade entre esses espaços descolados ou gourmet potencializa a região. Ele é sócio da Loja Nó, de roupas masculinas, com preços na média de R$ 100 e R$ 200 “Até incentivo, pelas redes sociais, a falar de coisas legais da região. A gente faz uma corrente para se fortalecer”, conta.

O Bar da Dona Onça e A Casa do Porco são as referências mais citadas entre frequentadores e empresários da região. Abertos respectivamente em 2008 e 2015, os restaurantes deram origem a mais dois espaços – lanchonete Hot Pork e Sorveteria do Centro, ambos de 2018 -, enquanto uma padaria está nos planos dos chefs Janaína e Jefferson Rueda, donos dos estabelecimentos.

Para Janaína, a República não vive um boom, mas um “movimento de ocupação”, “de mais gente vindo investir”, que ainda não se aproxima do período áureo da região. “Convivi no Paddock, na feijoada do Hotel Hilton, lembro da feijoada do Rubaiyat, do Bistrô da Zarvos, do Balloon. Ainda não existem lugares como aqueles que convivi”, diz a chef.

Em mais de dez anos, Janaína afirma ter o mesmo público variado do início, de manicure a desembargador. “É uma tarefa difícil, porque tenho de vender comida de alta qualidade com o mesmo preço de boteco.”

Características

O urbanista Valter Caldana lembra que São Paulo “identifica com muita rapidez e clareza” as características de seus territórios. Embora com públicos de faixa etária semelhante, há diferenças entre Vila Madalena, Pinheiros, Itaim-Bibi, Vila Olímpia e Avenida Brás Leme, por exemplo. “A sociedade tem ciclos rápidos, que se constroem rapidamente. Não é um problema em si, mas a diversidade é importante”, diz o professor da Universidade Mackenzie.

Ele ressalta que a variedade de perfis socioeconômicos é necessária para consolidar a valorização da República. “Se não, vai ser voo de galinha, sonho de uma noite de verão, que vai passar e ir para outra região”, diz.

Para Caldana, a República está explicitando como funciona a dinâmica de “como uma cidade se faz” em decorrência de fatores diversos, especialmente culturais e econômicos. “O centro passou por um período de apagão urbanístico, foi deixado para trás em um momento de busca de novos territórios. Esse modelo faliu no mundo inteiro, grandes cidades foram mudando, mas São Paulo não (até os anos 2000)”, explica. “O colapso do sistema fez a sociedade ter a demanda de se deslocar menos, aproximar a moradia da infraestrutura, das escolas, do emprego, do lazer, da cultura.”

O urbanista e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Kazuo Nakano reitera que o “fenômeno de retorno à cidade” é uma tendência mundial e para o centro expandido por inteiro – embora mais concentrado nas regiões menos degradadas, como o entorno da Avenida São Luís.

Um dos marcos, para Nakano, foi o retorno de órgãos públicos municipais e estaduais para a região, trazendo milhares de potenciais moradores.

Moradores temem aumento nos aluguéis

“Tô preocupado de ter de sair do centro”, dizia a postagem de um morador no grupo de um prédio da República, centro de São Paulo. O desabafo na rede social reuniu dezenas de comentários, grande parte deles igualmente temerosa com um possível aumento no custo de vida.

O arquiteto Daniel Falcão, de 31 anos, vive no distrito há oito anos e já teme se conseguirá se manter na República. Ele cogita trocar de apartamento, pois o atual tem pouca iluminação natural, mas está com dificuldades para encontrar algo melhor ou equivalente pelo mesmo preço que paga hoje (R$ 1,5 mil por aluguel e condomínio em uma quitinete). “Para a minha surpresa, pois tem muitos lançamentos na região. Imaginei que estaria mais barato”, diz.

“Cogito sair, mas tenho de pesar na balança, se vale a pena em relação a custos e qualidade de vida. Encontro valores mais baratos na região da (estação) Marechal (Deodoro), da Alameda Nothmann, da Sé, da Liberdade, que não são tão seguras, mas que poderia viver com a mesma facilidade que vivo hoje, em relação a localização, mobilidade, transporte, cultura”, afirma.

Já a publicitária Pollyanna Mattos, de 35 anos, vê que o aumento no custo de vida ainda compensa se for considerado que pode fazer quase tudo a pé. “Está sendo bom para nós, moradores. Traz mais segurança, mais estrutura, facilidades.”

Na internet, anúncios de aluguel para quitinetes na República vão de R$ 1 mil (imóvel antigo) para mais de R$ 3.860 (novo e mobiliado) nos pacotes com aluguel e condomínio.

Levantamento feito pelo sindicato do mercado imobiliário (Secovi) para o Estado aponta que o preço médio do m² de novos apartamentos à venda na República foi de R$ 1.408 (R$ 2.842, em valor corrigido pela inflação), em 2005, para R$ 8.489 no ano passado (R$ 8.707, em valor corrigido). A alta no preço é de 299%. O total de lançamentos de unidades também cresceu de 96, em 2005, para 762 no ano passado (o ápice foi 1.829, em 2014).

O urbanista Kazuo Nakano alerta para possível “gentrificação”, quando a valorização não permite a permanência dos moradores de classe baixa. Segundo ele, cidades que enfrentaram situação similar, como Barcelona e Berlim, tiveram de criar um teto para os aluguéis para conter o fenômeno. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.