Os resultados positivos apresentados pelas primeiras vacinas aprovadas por autoridades sanitárias estrangeiras têm implicações que vão muito além do combate da atual pandemia. A eficácia comprovada da inédita tecnologia de RNA mensageiro usada nesses produtos marca o início de uma nova era na fabricação de imunizantes e abre caminho para tratamentos inovadores contra câncer, problemas cardíacos e várias doenças infecciosas.

A tecnologia era perseguida há décadas por pesquisadores em várias partes do mundo. Nunca uma vacina com base em RNA mensageiro havia conseguido o sinal verde das agências reguladoras. Mas a emergência mundial de saúde imposta pela covid-19 fez as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna serem desenvolvidas e aprovadas em apenas dez meses. Um avanço que levaria pelo menos dez anos e afeta diretamente a produção de novos imunizantes. “A gente não saiu do zero para a vacina em dez meses”, explica o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri. “Toda a ideia foi uma adaptação de uma tecnologia que já vinha sendo desenvolvida há muito tempo.”

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O virologista Flávio Guimarães, do Centro de Tecnologia de Vacinas da UFMG, lembra também de um outro aspecto crucial: o financiamento. “Houve um influxo de dinheiro por parte das empresas e dos governos como jamais houve na história”, disse. “A ciência é pragmática: quando você paga, você recebe. Pode ser muito caro, mas recebe.”

Tradicionalmente, vacinas são feitas com o próprio patógeno que visam a combater, em formas enfraquecidas ou inativadas. O sistema imunológico é treinado a reconhecer e combater a infecção real. Essa tecnologia foi usada com sucesso no combate ao sarampo e à pólio, entre outras, mas ela leva anos, muitas vezes décadas, para ser desenvolvida. Já as novas vacinas são feitas com um microfragmento de material genético (no caso, o RNAm) sintetizado em laboratório.

Na natureza, o RNA mensageiro traduz as instruções inscritas no DNA e as leva até os produtores de proteínas dentro das células. As novas vacinas usam o RNAm sintético para levar instruções para as células sobre como produzir a proteína spike do coronavírus. Quando a proteína é produzida pelas células com base nas instruções enviadas pelo RNAm, ela “treina” o sistema imunológico a combatê-la.

Ou seja, em vez de levar fragmentos do patógeno atenuado ou inativado para dentro do organismo, as novas vacinas levam as instruções para sua produção. A eficácia das duas vacinas se revelou superior a 95% mesmo em grupos mais vulneráveis, como os idosos. Além disso, a produção é muito mais simples do que a dos imunizantes tradicionais, como avaliou Kfouri. “Ainda há alguns problemas que ainda podem ser aprimorados, como a limitação de custo e a termoestabilidade do produto, mas os resultados são espetaculares.”

As vacinas de RNAm de fato apresentam algumas limitações logísticas que não são apresentadas pelos imunizantes mais tradicionais. Tanto o produto da Pfizer quanto o da Moderna precisam ser armazenados em temperaturas extremamente baixas, de até -70º C, que demandam o uso de freezers especiais. A Pfizer criou uma embalagem especial com gelo seco para preservar as doses na temperatura ideal durante a distribuição, além de ter montado uma cadeia de distribuição. Ainda assim, tal característica pode representar um grande obstáculo em países como o Brasil, por exemplo.

Pesquisas

As tentativas de usar o RNAm na luta contra diversas doenças começou há décadas, mas o uso médico se revelou tarefa complexa. Durante muitos anos, a terapia foi um fracasso. Foi somente em 2005 que Katalin Kariko e Drew Weissman, da Universidade da Pennsylvania (EUA), descobriram uma forma de modificar o RNAm para que ele não causasse a inflamação exacerbada, que até então impedia o seu uso. Um segundo obstáculo era como proteger as frágeis partículas do RNAm em seu caminho até as células. A solução acabou sendo o desenvolvimento de uma espécie de “envelope” com nanopartículas de lipídio. Com tais avanços, foi possível começar a testar a tecnologia em seres humanos em 2015.

No caso da vacina da Pfizer/BioNTech, esse envelope de lipídios precisa ser mantido a temperaturas superfrias para não perder sua capacidade de proteção do RNAm. A Moderna conseguiu descobrir como manter os envelopes por mais tempo em temperaturas mais elevadas. Por isso, suas vacinas podem ser armazenadas em freezers normais e, por até um mês, em geladeiras comuns.

Outras aplicações

“Esses resultados abrem uma grande janela de oportunidade em relação a outras vacinas”, afirmou Kfouri. “Usamos hoje vacinas de eficácia aceitável mas não ótima, como a da gripe, por exemplo, que é de 60%. Temos no mercado muitas vacinas que tiveram um enorme impacto na saúde pública e não têm nem 70% de eficácia. Podemos pensar em migrar esses imunizantes para uma nova geração de vacinas. Teremos vacinas melhores, produção mais rápida.”

O mesmo grupo da Universidade da Pennsylvania já testou a tecnologia para o desenvolvimento de vacinas contra cerca de 30 doenças diferentes. Os resultados iniciais dos testes em camundongos do produto contra diferentes tipos de gripe foram positivos. Também se revelaram promissores produtos contra a herpes genital e a malária. O grupo também conseguiu induzir a produção de proteínas cuja ausência pode provocar uma série de doenças, como a fibrose cística.

A Moderna, por sua vez, além da vacina contra a covid-19, também trabalha em imunizantes contra outras doenças infecciosas como zika e chikungunya. A farmacêutica também está testando, com a Merck, uma vacina terapêutica a base de RNAm, voltada para tratar câncer.

A terapia é personalizada, com base nas mutações específicas encontradas nas células tumorais. Quando usado em conjunto com um medicamento da Merck contra o câncer, o produto se mostrou promissor em pacientes com tumores de cabeça e pescoço, em estudos iniciais.

A BioNTech também avança em seus estudos de uso de vacinas de RNAm no tratamento do câncer, principalmente tumores de mama, pele e pâncreas. A farmacêutica tem vários produtos em desenvolvimento, incluindo um para um tipo específico de câncer de pele que já está em fase de testes. Uma das grandes vantagens das vacinas de RNAm é que elas podem ser rapidamente ajustadas a mutações virais ou a eventuais quedas na imunidade.

O maior desafio agora é aprimorar ainda mais a tecnologia, tornando o transporte das vacinas mais simples e os custos ainda mais baixos. “Essas são as vacinas do futuro”, diz Kfouri.

Imunizantes não fazem alterações no DNA dos vacinados

Embora a segurança das vacinas produzidas pelas farmacêuticas Pfizer/BioNTech e Moderna tenha sido atestada e comprovada conforme todos os protocolos internacionais, notícias falsas começaram rapidamente a circular dando conta de supostas “alterações do DNA causadas pelas vacinas genéticas”. Especialistas explicam que tais alterações seriam impossíveis de acontecer. Essa informações equivocadas têm sido disseminadas por grupos antivacina, já faz algumas semanas, e vêm sendo até foco de esclarecimentos por parte de agências internacionais que combatem as fake news.

Explicando melhor: a tecnologia utiliza um fragmento sintetizado de RNA mensageiro para levar para dentro das nossas células as instruções para a fabricação de um fragmento de proteína do Sars-CoV-2. Esse fragmento não causa a doença, mas “ensina” o nosso sistema imunológico a reconhecer um invasor e atacá-lo. Tudo isso acontece no citoplasma da célula, não no núcleo, onde fica abrigado o nosso DNA.

“Ele não afeta todo o organismo, nem traz alterações permanentes”, explica o professor de Biologia e Química da Universidade de Columbia, nos EUA, em entrevista à agência de notícias Associated Press (AP). “Ele não invade o núcleo da célula para afetar o código genético.”

Além disso, acrescenta o especialista, o RNA mensageiro replica o processo de uma infecção viral. Quando um vírus de verdade entra nas células, ele tampouco afeta o material genético do hospedeiro, apenas “sequestra” seus sistemas para produzir cópias de si mesmo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.