Pouco mais de uma década depois de o italiano João Baptista Raia (1879–1956) inaugurar sua primeira farmácia – numa época em que a palavra ainda era grafada com “ph” –, em 1905, na cidade de Araraquara (SP), o mundo foi impactado pela pandemia da gripe espanhola. O imigrante europeu que se tornou farmacêutico no Brasil manteve seu estabelecimento em pleno funcionamento e começou, logo em seguida, o processo de expansão da marca. Mais de um século depois, em meio à pandemia do novo coronavírus, que já contaminou quase 600 mil pessoas no Brasil e causou mais de 32 mil mortes no País – até a quinta-feira 4 –, a companhia Raia Drogasil parece demonstrar a mesma resiliência do seu fundador. Em meio à crise, a companhia cresce em vendas e vê sua participação líder no mercado brasileiro subir 1,1%, nos primeiros três meses de 2020, em relação ao mesmo período do ano passado, de 12,7% para 13,8%. Como era de se esperar no setor farmacêutico, o isolamento social em boa parte dos estados brasileiros a partir da segunda quinzena de março definitivamente não fez mal à companhia.

Os números, que já eram sólidos, cresceram no mesmo ritmo em que a preocupação e a busca por medicação aumentavam. No primeiro trimestre deste ano, ainda quase integralmente fora do impacto da pandemia, a companhia registrou faturamento de R$ 5,2 bilhões, alta de 25,3% em relação aos R$ 4,15 bilhões dos primeiros três meses de 2019. No lucro líquido, o salto foi maior. Foram R$ 152,7 milhões de janeiro a março, 44,8% acima do que foi obtido no período do ano passado, com R$ 105,5 milhões. A Raia Drogasil fechou 2019 com faturamento de R$ 18,4 bilhões.

O crescimento nos três meses de 2020 foi impulsionado pelo aumento significativo nas vendas nos dias anteriores ao início da quarentena, em um caminho parecido ao percebido pelo segmento supermercadista. Do montante, 46,4% vieram de medicamentos e produtos de venda livre, isentos de prescrição e fora do balcão. No item, estão incluídas as vendas de álcool gel, um dos poucos produtos oferecidos pela rede que registraram falta em um curto período. Os genéricos, por sua vez, tiveram alta de 30%, e os itens de perfumaria, de 14,4%. “A gente percebeu um movimento muito maior de clientes dos dias 10 a 23 de março, quando houve procura por analgésicos, de antitérmicos e de uso crônico, como uma espécie de estoque em casa”, diz o CEO da Raia Drogasil, Marcílio Pousada.

O mesmo movimento também foi percebido por todo o segmento. Dados da empresa de inteligência de mercado IQVIA, cedidos pela Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), mostram que as vendas nas quase 80 mil farmácias espalhadas pelo País renderam R$ 124,7 bilhões, entre maio de 2019 e abril de 2020, já sob reflexo nos últimos 45 dias do isolamento. O aumento foi de 8,2% em relação ao mesmo período do ano anterior, quando a receita chegou a R$ 115,2 bilhões. O crescimento também ocorreu em número de produtos vendidos, entre medicamentos e itens de higiene pessoal e perfumaria. Foram 6,2 milhões de unidades, entre maio do ano passado e abril deste ano, contra 5,8 milhões nos doze meses anteriores.

Farmácias em cidades do interior do Brasil, onde os números de casos de Covid-19 são geralmente menores do que nas regiões metropolitanas, também registraram forte crescimento no período. A Farmarcas, rede associativa que reúne 11 pequenas e médias redes farmacêuticas, registrou crescimento de 27% em abril, comparado ao mesmo mês do ano passado. O grupo faturou R$ 3,26 bilhões, levando-se em conta os dados de maio de 2019 a abril deste ano. “A pandemia pouco afetou nossa projeção de crescimento. Hoje, temos 1.239 lojas no Brasil e devemos inaugurar pelo menos mais 100 até o final deste ano”, diz o presidente da Farmarcas, Edison Tamascia. A previsão inicial era de chegar a 1,4 mil farmácias em 2020. “Ser uma rede do interior nos beneficiou. Muitas lojas estão na periferia dessas cidades”, destaca.

EXPANSÃO CONTINUA Com 2,1 mil unidades e mais de 8 mil farmacêuticos, a Raia Drogasil mantém o planejamento de inaugurar 240 lojas este ano. (Crédito:Arquivo Istoé Dinheiro/Claudio Gatti )

O crescimento do setor também ocorreu no e-commerce da Raia Drogasil, que disparou neste ano, com 213% de aumento, levando-se em conta também os números da Drogaria Onofre, adquirida pelo grupo em 2019. A alta nas vendas on-line das farmácias da rede fez com que a fatia do digital no faturamento da companhia aumentasse de 2,3%, no quarto trimestre de 2019, para 2,7%, no trimestre seguinte. O crescimento nas plataformas foi acompanhado por uma aproximação com o público-alvo das drogarias. E, em uma espécie de volta à farmácia do passado, no estilo ‘farmacêutico de família’, a rede mirou nos serviços de comunicação com o consumidor, como a entrega de produtos pelos próprios funcionários da loja a uma distância de até 300 metros da residência do cliente. “Muitas ações foram antecipadas por causa da pandemia. Esse novo momento fez com que aumentasse o volume de vendas e modificasse o hábito do cliente. E reagimos bem”, diz Marcílio Pousada. Ele destaca que, no mês passado, a rede pasou a comercializar testes rápidos para detectar a Covid-19.

“É muito importante oferecer serviços farmacêuticos, além da venda de remédios, para poder ajudar a cuidar da saúde primária desse consumidor”, afirma o presidente da companhia. “É um pouco do resgate da farmácia do passado.” Das 2.107 lojas presentes em 23 estados, 95% não sofreram nenhuma alteração de funcionamento em virtude do isolamento social causado pela pandemia. Os outros 5% correspondem a unidades localizadas em shoppings, que precisaram fechar as portas. A quarentena também não modificou o planejamento da companhia de inaugurar 240 lojas no País ainda neste ano, mesmo que num ritmo mais cadenciado do que o previsto no fim da temporada 2019. Nos primeiros três meses, foram abertas trinta e nove unidades. Para cumprir a meta, a empresa terá de entregar outras 201 lojas em nove meses.

 

Toda a mobilidade mostrada pela empresa ajuda a refletir em seu valor de mercado. No dia 24 de março, quando a quarentena no estado de São Paulo teve início, o papel da Raia Drogasil na B3 valia R$ 108,04. Na terça-feira 2, alcançou R$ 113,37, alta de 4,9% no período. Relatório produzido no fim de abril pelo analista de varejo Pedro Fagundes, da XP Inc., mostra recomendação neutra para as ações. “Conforme as restrições relacionadas ao período de quarentena são gradualmente flexibilizadas, será importante acompanhar a evolução do fluxo de pessoas não só nas ruas e lojas, mas também nos próprios hospitais privados”, diz o analista no texto.

“A associação apoiou o adiamento, mas agora é necessário o reajuste” Sérgio Mena Barreto, CEO da Abrafarma. (Crédito:Eduardo Valente)

REAJUSTES No fim de março, o governo federal editou a Medida Provisória 933, para adiar por 60 dias o reajuste anual do valor dos remédios, que deveria entrar em vigor no dia 1º de abril. Vencido o prazo, a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) permitiu o aumento de até 5,21% nos preços. A autorização foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União (DOU) da segunda-feira 1º. O Senado, no entanto, aprovou, na terça-feira 2, projeto de lei que congela preços de remédios por dois meses e de planos de saúde por quatro meses. O CEO da Abrafarma, Sérgio Mena Barreto, diz ser necessário o reajuste nesse momento principalmente por conta do aumento de custos. “A associação apoiou o adiamento por dois meses, mas esse reajuste é necessário. Há casos em que o transporte do princípio ativo aumentou em 20 vezes por causa da dificuldade de logística”, diz o dirigente. “Sem essa correção, é possível que comece a faltar alguns produtos.”

E é justamente a hidroxicloroquina, que, mesmo sem eficácia comprovada, ainda é considerada pelo governo federal alternativa para combater a Covid-19 – contrariando recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) –, que ainda registra falta nas farmácias brasileiras. Ocorre que o remédio é usado por 100 mil pessoas que têm lúpus, artrite ou malária.

Em março, houve enorme procura pelo medicamento e os estoques restantes foram requisitados por estados e municípios. “O princípio ativo vem da Índia. Com a alta na demanda, os valores dispararam”, diz o presidente-executivo da Abrafarma. “Estamos ao menos garantindo a quantidade para quem compra regularmente.”

DEMANDA Vendas de medicamentos dispararam durante a pandemia. (Crédito:Cláudio Gatti )

Reflexos negativos para o setor preocupam, mas ainda não impactam a empresa. Com mais de 42 mil funcionários, a Raia Drogasil manteve os colaboradores e ainda ampliou o quadro desde o início da crise sanitária, com mais 2 mil para substituir os que entraram em licença e os que tiveram de se afastar por fazer parte do grupo de risco do novo coronavírus. Desde o início da crise, os funcionários passaram a ter o serviço de telemedicina do Hospital Israelita Albert Einstein. O CEO Marcílio Pousada diz que foram destinados R$ 25 milhões em ações de combate ao novo coronavírus no Brasil, por meio da doação de recursos para 50 hospitais filantrópicos em pequenas e médias cidades, média de R$ 500 mil para cada, além de 10 mil caixas de medicamentos à rede pública do estado de São Paulo, R$ 500 mil para a compra de cestas básicas e 100 mil máscaras para a Prefeitura de Belém. Para o executivo, a pandemia vai trazer, de forma definitiva, um aumento no cuidado com a saúde. Ele acredita num cenário de união de esforços, mesmo que tardia, entre as autoridades políticas, pelo menos no período em que os estados começam a pensar na retomada, ainda que com avanço de casos. “Com mais colaboração, o País sairá mais forte”, diz. “E tenho certeza de que toda a classe política vai ter o bom senso de fazer o melhor para os brasileiros.”