Se a usina binacional de Itaipu, localizada no Rio Paraná, fosse um brinquedo, ela seria dividida entre duas crianças muito diferentes. Uma delas, maior e mais ativa, iria brincar muito mais. E a segunda, menor e menos elétrica, aceitaria ceder o uso do brinquedo em troca de dinheiro para pagar a merenda, por exemplo. Inevitavelmente, as duas acabariam brigando. A criança maior reclamaria que a outra cobra muito caro. E a menor se sentiria intimidada e pressionada pela sócia mais robusta.

Esse exemplo do mundo infantil não está longe da realidade geopolítica de Brasil e Paraguai na gestão de Itaipu. Cada país tem direito a 50% da energia gerada, mas o Brasil precisa de bem mais do que isso. O Paraguai, por sua vez, vende ao sócio parte da eletricidade a que tem direito e não consome. As negociações para ajustar o preço da energia vendida levaram os dois países a um impasse — e a oposição paraguaia aproveitou o embate para pedir o impeachment do presidente Mario Abdo Benítez. O desentendimento na hora do recreio acabou virando um problema sério.

Em funcionamento desde 1983, na divisa entre os países, Itaipu utiliza as águas do Rio Paraná e tem importância estratégia para os dois sócios. Apesar de ter desenvolvido outras formas de geração, o Brasil é dependente da energia da usina. E o Paraguai tem na binacional a sua maior fonte de receita. Desde o início da operação, os paraguaios vendem a energia excedente para os brasileiros, mas ao longo dos anos, o valor foi aumentando. Em 2009, o valor de US$ 13,81 por megawatts por hora (MWh) pulou para US$ 41,45 graças a um acordo entre os então presidentes Lula e Fernando Lugo.

A diferença de valor foi ainda mais acentuada devido a uma manobra técnica eficaz feita pelo Paraguai. Com capacidade de gerar até 14.000 MWh, Itaipu produz a cada ano, em média, menos da metade: apenas 6.900 MWh. É a chamada “energia assegurada”. Em cima disso, os dois países fazem um planejamento e informam quanto de energia irão consumir. O que é gerado acima dessa média é chamado de “energia secundária”, que é mais barata do que a assegurada. Foi aí que se deu a mágica. “Os paraguaios passaram a fazer sua projeção anual abaixo do que de fato precisariam, comprando pouca energia assegurada e completando a demanda com a energia secundária”, explica Carlos Schoeps, da consultoria de energia Replace.

“Não se vende, se defende”: Protesto na capital paraguaia (à direita) para que o novo acordo de preços de Itaipu não seja assinado.Manifestantes querem a saída de Benítez (à esquerda) (Crédito:Paulo Lisboa / Brazil Photo Press e Norberto Duarte / AFP)

Com essa manobra e o aumento do preço negociado entre Lula e Lugo, Itaipu se tornou uma fonte de receita ainda mais essencial para o Paraguai. No ano passado, o Brasil teve um saldo negativo de US$ 2,9 bilhões na operação, enquanto o Paraguai recebeu US$ 249 milhões. O Brasil iniciou então um processo de negociação de contrato para que o vizinho consuma mais da “energia assegurada”. O resultado foi uma crise política interna no Paraguai.

IMPERIALISTA As conversas sobre um novo acordo começaram quando Michel Temer assumiu a presidência, em 2016, e prosseguiram com Jair Bolsonaro. O diálogo entre os países era secreto e privado, mas acabou vazado pela imprensa. Nos próximos três anos, o Paraguai pagaria cerca de US$ 200 milhões a mais pela energia de Itaipu, diminuindo drasticamente seu saldo anual. Essa tratativa enfureceu a população do país, que tomou as ruas para pedir a saída de Mario Abdo Benítez da presidência.

Os paraguaios veem o Brasil como uma potência imperialista e nutrem rancores que remontam à Guerra do Paraguai (1864-1870), conhecida no país como “Guerra Grande”. Benítez foi acusado de entreguismo e pode sofrer um impeachment que, como se sabe, é a forma preferida dos países da América do Sul na solução de problemas políticos. Assim como o Brasil fez com Dilma Rousseff em 2016, o Paraguai também removeu Fernando Lugo em 2012. Para evitar maiores instabilidades, o Brasil recuou nas negociações.

“O que a democracia exige é que uma auditoria externa seja feita em Itaipu e os valores renegociados de acordo com o seu resultado”, diz Roberto Goulart Menezes, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. “Itaipu será sempre um tema politizado no Paraguai, dado a importância que ela tem para o país.”
Benítez, que é de direita como Bolsonaro, enfrenta agora uma batalha para permanecer no poder. “Aceito a luta! Por um Paraguai sem máfias”, disse ele, após o pedido de impeachment ser protocolado, na sexta-feira 2. Não será fácil. Até mesmo parte de seu próprio partido, o Colorado, encabeçado pelo ex-presidente Horacio Cartes, quer sua saída. Já o governo Bolsonaro terá de avaliar como rever os termos sem perder muito. Representantes de Itaipu e o Itamaraty não comentam o caso, tornando o desenlace imprevisível. O “brinquedo” dividido continua a ser um grande motivo de preocupação para a criança mais forte, o Brasil.