Um dos muitos gráficos utilizados por técnicos para mostrar o colossal peso da Previdência no Brasil revela um descompasso dos custos em relação a países de demografia semelhante. Antecipamos em ao menos 26 anos a bomba previdenciária que seria deflagrada pelo envelhecimento da população. Gastamos hoje um volume de recursos que só deveria ser alcançado em 2045. Nesse ritmo, quando o País tiver um perfil semelhante ao do Japão atual, desembolsaremos duas vezes mais o que os japoneses gastam hoje em benefícios aos idosos.

Esse diagnóstico é antigo, mas foi preciso que o Brasil vivesse a sua pior recessão e registrasse uma sequência de déficits para resolver agir. A Previdência ocupa cerca de 60% do Orçamento federal e, se nada for feito, deve alcançar quase 80% em 2026. Ou seja, de cada R$ 1,00 arrecado pelo estado, R$ 0,80 seriam para pensões. Só um aumento exponencial da carga tributária poderia sustentar uma conta tão gorda.

O principal vilão da história é a ausência de uma idade mínima para a aposentadoria: a média de idade dos aposentados brasileiros é de 59,4 anos contra 64 anos nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). A idade mínima estava prevista no primeiro marco previdenciário, criado em 1923 (50 anos para homens e mulheres). Mas a regra foi extinta em 1962. Em 1998, no governo Fernando Henrique Cardoso, um voto errado no Congresso impediu a recriação do instrumento (60 anos homens e 55 mulheres). A equipe do presidente Jair Bolsonaro tem agora a chance de aprovar a mudança que seus antecessores não conseguiram.

Pelas novas regras, homens só poderão se aposentar aos 65 anos e as mulheres, aos 62. No caso de trabalhadores rurais, professores e servidores públicos, a idade mínima passa a ser de 60 anos, independentemente de gênero. Tratam-se das principais fontes de contenção de custos no texto apresentado pelo governo na quarta-feira 20. Ao todo, a reforma deve reduzir os gastos previdenciários em R$ 1,1 trilhão nos próximos dez anos. No projeto do presidente Michel Temer, de 2016, a expectativa era de uma diminuição de R$ 851 bilhões, valor depois reduzido a R$ 553 bilhões nas modificações feitas na Câmara. Como uma desidratação do projeto já é esperada, este número é visto como mais realista pelo mercado. Abaixo disso, o problema continua. Acima, seria uma surpresa positiva.

Pose para foto: Bolsonaro foi à Câmara para entregar o texto da reforma pessoalmente (Crédito:Marcos Correa)

A reforma de Bolsonaro é mais ampla que a de Temer e incorpora medidas para diminuir resistências. Por exemplo: a redução da alíquota de contribuição para quem ganha até dois salários mínimos ajudará a contrapor a necessidade de um tempo maior de contribuição; um esforço para melhorar a cobrança de devedores ajuda a reduzir o argumento de que faltou empenho para recuperar débitos. “Sabemos que a Nova Previdência exigirá um pouco mais de cada um de nós. Porém, é por uma causa comum: o futuro do nosso Brasil”, disse o presidente Jair Bolsonaro em declaração na TV. Os servidores darão a maior ajuda. A alíquota de contribuição subirá dos 11% para até 22%, de acordo com a faixa salarial – na prática, uma redução dos rendimentos. O tempo de contribuição mínimo será de 25 anos, com ao menos dez deles no serviço público.

Trabalhadores do setor privado terão que acumular 20 anos de contribuição mínima, ante os 15 anos atuais. O benefício começa em 60% das contribuições, não pode ser inferior ao salário mínimo e só chega a 100% com 40 anos de contribuição. A regra de transição é de até 14 anos e pode ser feita de três formas: por um sistema de pontuação que considera tempo de contribuição mais idade; apenas por idade ou uma forma com um redutor do valor do benefício para quem buscar o benefício mais cedo. Os novos parlamentares passarão a ter regras iguais às do INSS.

Duas medidas devem ajudar estados e municípios em dificuldades. A primeira exige o aumento compulsório da alíquota dos servidores se houver déficit na Previdência (condição da maioria). A segunda autoriza militares da reserva a trabalhar como civis, uma forma de otimizar o contingente de inativos. Será extinta a multa de 40% do FGTS nas demissões de quem já se aposentou e voltou ao mercado. Ficarão para um segundo momento os detalhes do regime de capitalização proposto, em que os trabalhadores passam a ter uma conta individual, além das mudanças no setor militar. A previsão é que esta última saia em março e venha com aumento de alíquota e tempo de contribuição. “O projeto é consistente. Vamos acompanhar no Congresso porque nunca um texto chegou e saiu e igual”, diz Fernando Pimentel, presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit).

DESIDRATAÇÃO Já é possível prever onde haverá resistência. Não deve passar a regra que diminui a aposentadoria de quem ganha até R$ 250 – cairia de um salário mínimo para R$ 400. Com força no Legislativo, os servidores devem abrandar o endurecimento para a categoria. O tempo de transição e a regra do benefício mínimo também devem ser afrouxadas. Para Luis Eduardo Afonso, professor da USP especialista em Previdência, é imprescindível que o texto final tenha idade mínima, o menor número de exceções possível e consistência no conjunto. “A proposta se beneficia da experiência acumulada com a reforma do Temer”, afirma Afonso. “É óbvio que terá resistência, mas o que foi feito é muito defensável.” Entre os especialistas, sobraram dúvidas e críticas ao sistema de capitalização. “Uma preocupação é que aos 18 anos será preciso fazer uma escolha para a vida. Não pode migrar de um para o outro”, diz Carlos Heitor Campani, especialista em previdência e professor do COPPEAD/ UFRJ.

Definidos os detalhes técnicos, começa a negociação no Congresso. No dia da apresentação, as centrais sindicais já foram para as ruas em protesto. Na Câmara, o texto precisa ser aprovado em duas comissões. No plenário, terá de receber o sim de 308 dos 513 parlamentares, em duas votações. No Senado, são necessários 49 votos, de um total de 81. Para o Itaú Unibanco, a votação na Câmara só acontecerá depois de agosto. “Alguma coisa tem de sair, mesmo que seja uma reforma fatiada”, diz Kelly Carvalho, economista da Fecomercio-SP.

A aprovação daria confiança de sustentabilidade às contas públicas e abriria espaço para um patamar menor de juros, um estímulo para o consumo e o investimento, mas não resolveria por completo o ajuste fiscal. Para estabilizar a dívida, é preciso um esforço de 4% do PIB. A reforma dará 2,5% e o restante deve vir de mudanças nas fórmulas de reajuste do salário mínimo e dos servidores. São temas espinhosos. O desejo da equipe econômica de reduzir a carga tributária deve ficar para um próximo mandato.


O adeus ao primeiro ministro

Crédito: Evaristo Sa / AFP

Com apenas 49 dias de governo, o presidente Jair Bolsonaro sofreu a sua primeira baixa. A demissão de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência pode atrasar a aprovação da reforma. Não pela simples substituição do ministro pelo general da reserva Floriano Peixoto, mas pela forma como Bebianno foi fritado nas redes sociais. No mesmo dia da exoneração, foram divulgados os áudios das conversas por WhatsApp entre o ex-ministro e o presidente, com detalhes de assuntos internos do governo.

A confusão começou após a revelação de um esquema de candidaturas laranjas no PSL, enquanto Bebianno era presidente interino do partido. Bolsonaro declarou ter dado sinal verde para as investigações. Bebianno também correu para a imprensa: disse que a situação era de tranquilidade e que havia conversado por três vezes com o presidente. Foi chamado de mentiroso pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) e pelo próprio presidente. Os áudios, no entanto, revelaram que Bebianno havia trocado mensagens com Bolsonaro.

O risco é de que o episódio fragilize a coesão da base aliada. O fracasso do governo Michel Temer em aprovar a reforma é atribuído em boa parte ao escândalo do JBS. Segundo Vitor Hugo (PSL-GO), líder do governo no Câmara, a relação com o Congresso está preservada. Os parlamentares deram um recado diferente. No dia do vazamento dos áudios, eles impuseram a primeira derrota do governo ao derrubar o decreto presidencial que alterou as regras da Lei de Acesso à Informação. Neste mar de incertezas políticas, o que se sabe até agora é que não há articulação política ou qualquer habilidade de comunicação no governo. O ambiente no Congresso é péssimo.