Não era exatamente o objetivo, mas um documentário que a Netflix está lançando acaba por jogar luz sobre um lugar quase sempre nas sombras: a cabeça (e o coração) de mulheres que sofreram abuso. Ouvir o que elas contam é perturbador, mas ajuda a entender como culpa, vergonha e medo se misturam para que fiquem caladas. Ou, ainda pior, como um abusador desacredita facilmente suas vítimas quando elas, enfim, conseguem falar.

Em quatro capítulos, a ideia dos produtores de “Jeffrey Epstein: podre de rico” (no original) era mostrar como o financista bilionário, bonitão e controverso passou anos driblando acusações de abuso e pedofilia por conta de suas relações com o poder e os poderosos. Isso até morrer na cadeia em Nova York, no ano passado, durante uma investigação barulhenta por tráfico de menores para a qual foram arrastados um presidente, um ex-presidente, um príncipe, gente do cinema e um secretário de Estado. Oficialmente, foi suicídio.

Mesmo que não traga grandes novidades sobre o caso em si, o documentário presta um grande serviço. A diretora Lisa Bryant conseguiu encontrar e convencer algumas das muitas mulheres abusadas por Epstein, por seus amigos e convidados em cenários como mansões, jatinhos e uma ilha particular no Caribe a revelar publicamente suas histórias. Hoje na faixa dos 30 e poucos anos de idade, elas tinham entre 13 e 16 quando conheceram o esquema de aliciamento descrito como uma “pirâmide de garotas”. A cada uma que atraía, Epstein ou alguém do seu círculo restrito oferecia dinheiro para que trouxesse outras – 200 dólares por cabeça.

O esquema parava em pé porque juntava um homem poderoso e garotas muito jovens, e muito vulneráveis. Adolescentes com baixa autoestima, ou em dificuldade financeira, ou já abusadas anteriormente, ou de famílias pouco atentas ao que acontecia com elas, ou muito ingênuas – ou tudo junto. Porque um abusador sente o cheiro da vulnerabilidade de sua vítima de longe, e por isso a escolhe. Quanto mais, melhor para ser manipulada.

O que as mulheres contam diante da câmera, entre constrangidas e emocionadas, escancara esse método. E mais outro: o do silêncio comprado com dinheiro, ameaças e, principalmente, com a certeza que o abusador tem de que a mulher abusada está envergonhada demais para contar o que aconteceu a quem quer que seja. Tem ainda medo de que não acreditem nela, e de que vai acabar como a grande culpada. Nas palavras de uma delas: “Sinto que me critico até hoje, me culpo e me julgo o tempo todo, (mas) eu só tinha dezesseis anos. O adulto era ele.”

Os relatos são ainda mais impactantes porque surgem costurados com trechos gravados dos depoimentos sigilosos que, com voz e insegurança de adolescentes, as mulheres deram à policia quando Epstein foi denunciado pela primeira vez, em 2005. Na época, a investigação foi arrastada, mas ele acabou preso em 2008, cumpriu apenas 13 meses e se livrou com um acordo polêmico turbinado pelos amigos influentes. Os depoimentos das vítimas foram engavetados. O abusador continuou à caça de outras.

Para aproximar Epstein da nossa realidade: estimativas mostram que, no Brasil, três casos de abuso contra meninas menores de idade acontecem a cada hora. É uma tragédia dos subterrâneos, mas seus números bem que podiam ser outros: dez anos antes de ser preso pela primeira vez, Jeffrey Epstein foi acusado por duas irmãs. À Justiça, alegou que ambas estavam apaixonadas por ele e não mereciam crédito. Escapou pela primeira vez. Até morrer na cadeia, dizem que pode ter abusado de 500 (!) garotas. Algumas estão no documentário. Várias se recusaram a aparecer, porque não conseguem falar disso. E acham que, mesmo depois de tudo, ninguém ia acreditar nelas.