Seis ministros da Fazenda, cinco programas de reaquecimento econômico, dois anos de pesada recessão, 103 grandes manifestações de rua, um impeachment presidencial, seis anos de inflação acima da meta e um crescimento anual médio do Produto Interno Bruto (PIB) de 1,39%. Esses são alguns dos dados que melhor definem a década que começou em 2010. Sem buscar culpados ou chorar o leite já derramado, o momento é de repensar os erros cometidos pelos três presidentes que ocuparam o mais alto cargo do Executivo neste período — e tentar desenhar uma rota que reduza a desigualdade social e recupere o desenvolvimento econômico do Brasil, algo que parecia estar garantido entre 2000 e 2009.

“Chorar os anos perdidos em nada ajuda na construção de um futuro melhor. É óbvio que os erros superaram os acertos econômicos na década passada, mas é preciso se despir de posicionamento político — seja ele de esquerda ou de direita — e pensar que é necessário aprender com o passado”, essas palavras, que soam muito atuais, foram ditas em 1990, no auditório da Universidade de São Paulo (USP), por Zélia Cardoso de Mello, então ministra da Economia do governo Fernando Collor. A sensação de ressaca econômica que o País enfrente agora, em 2020, em muito se assemelha à vista em 1990. E, ainda que itens estruturais, como a hiperinflação, não tenham assolado a vida dos brasileiros nessa segunda década perdida, os pontos em comum são curiosos.

Entre 1981 e 1990, a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, também teve seis comandantes na pasta da Fazenda. Zélia, que foi a última deles, também trocou o nome para Ministério da Economia, assim como Paulo Guedes, ao assumir o cargo, em 2019. Entre os pontos de convergência dos dois períodos há, ainda, as decisões econômicas desastrosas e a política do “quanto pior melhor”, que só enfraquece o governo por meio de pautas-bomba no Congresso. Tanto 1990 quanto 2010 começaram após um ciclo de avanço apoiado na frágil demanda de commodities. Também foi em 1989 que Collor bateu o PT no segundo turno das eleições — o primeiro pleito direto desde 1960 — tendo o PDT e o PSDB na terceira e quarta colocações.

Além da renda: A oferta de serviços púplicos, em especial os de saúde, como o SUS, e de educação, amenizam o impacto causado pelo crescimento da desigualdade social no País. (Crédito:Adriano Vizoni)

Com um discurso contra “a roubalheira” e o fim dos “marajás” no setor público, Collor, assim como Bolsonaro, era de um partido pequeno, queria romper com o sistema tradicional e, sob a orientação de Zélia, criou o plano econômico que levou seu sobrenome. Inconstitucional e com efeitos catastróficos na economia, o Plano Collor deu errado, a inflação saiu novamente do controle e o PIB apresentou um tombo de 4,3%. O que podemos aprender com isso? Que não há salvador da pátria e que planos mirabolantes costumam dar muito errado.

“ATROCIDADES” Empresários e economistas ouvidos pela DINHEIRO são unânimes sobre a existência de grandes “atrocidades” econômicas a partir de 2010, e tentam explicar como esses erros nos levaram ao menor crescimento médio anual desde 1900. Na avaliação de Rui Costa Garcia, que foi secretário especial do Ministério da Fazenda entre 2011 e 2014, o projeto econômico de Dilma Rousseff, que ganhou a alcunha de Nova Matriz Econômica, envolvia grandes intervenções do governo no mercado. Entre elas, estavam a redução das tarifas de energia elétrica, controle nos preços dos combustíveis, uso dos bancos públicos para reduzir os spreads bancários, corte da taxa básica de juros para patamares mínimos históricos até então e ampliação do programa de desonerações. “Tudo poderia funcionar, não fosse o momento histórico: o fim da era das commodities, a chegada no Brasil da crise que assolou os Estados Unidos em 2008 e, de modo mais acentuado no segundo mandato de Dilma, a clara desarticulação da presidente no Congresso Nacional”, afirma Garcia.

É preciso somar a essa lista a corrupção que atravessa as décadas e se institucionalizou nos governos petistas com o Mensalão e o Petrolão, responsáveis pela perda de confiança de investidores e de parte da população. O resultado, além do impeachment, foram dois anos seguidos de PIB negativo em 3,5%, algo inédito no País. O desemprego avançou em um ritmo severo, o que empobreceu as famílias e aumentou a dependência de programas sociais — em um momento em que a menor receita do governo exigia corte de gastos públicos. “Outro fator negativo foi que a demanda por minério de ferro brasileiro, que sustentou parte da ascensão econômica no governo Lula, foi arrefecendo e só restou a demanda do consumo interno para sustentar o PIB”, afirma o economista Carlos Rocco, especialista em contas públicas.

O economista Roberto Macedo, da USP, ex-secretário de Política Econômica e que foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), desenhou um mapa sobre o que aconteceu na última década. Para ele, o calcanhar de Aquiles do governo Dilma foi a crise fiscal, que culminou em uma recessão econômica entre junho de 2014 até o fim de 2016. De lá para cá, a retomada se dá em passos de formiga, levantando a dúvida sobre o que poderia ser feito para inverter essa estagnação.

“Os ciclos de crescimento e recessão podem ser avaliados de modo distinto, dependendo da linha da filosofia econômica que o mandatário assume”, diz Marcos La Veiga, doutor em Ciências Econômicas. “Os desafios da década de 2010 aconteceriam de qualquer forma, ainda que tenham sido inflados por uma política econômica ruim.” Carlos Constantino Macêdo, chefe da divisão de estudos econômicos da América Latina na Universidade del Chile, vai além. “A Lei de Responsabilidade Fiscal resultou em superávit fiscal primário, que levou a classificação de risco soberana do Brasil ao grau de investimento pelas principais agências de rating. Depois, durante a Nova Matriz Econômica, os gastos públicos saíram do controle e houve rebaixamento do rating”, diz. Ele ressalta, no entanto, que as medidas de Dilma visavam sustentar os altos níveis de lucro do empresário brasileiro registrados na década anterior. “E tudo isso em um cenário de tensão global. Dívida na zona do euro e, principalmente, queda no preço das commodities”, destaca Macêdo.

Até sofrer o impeachment, Dilma teve como ministros da Fazenda Guido Mantega, Arno Augustin, Alexandre Tombini e Nelson Barbosa. Segundo La Veiga, ela cometeu muito erros, mas o descontrole das contas públicas foi o maior deles. “No governo Lula, houve forte transferência de renda, por meio de programas sociais e pela ascensão da classe C. Tudo isso ia bem enquanto o País crescia e a transferência não era sentida pelo topo da pirâmide. A partir de 2013, não havia mais espaço para essa transferência acontecer sem tirar, por exemplo, as desonerações para empresas”, afirma.

Um problema anterior Para a economista Laura Carvalho, autora do livro Valsa brasileira: do boom ao caos econômico, é preciso olhar o período histórico de modo mais abrangente. Ela considera um grande acerto (iniciado no governo Lula) a ideia de que a redução das desigualdades no País seria um bom motor de desenvolvimento econômico. “Houve pleno entendimento de que o mercado interno, em um país continental como o nosso, tem um papel fundamental. E era preciso redistribuir renda e fazer investimentos públicos físicos e sociais”, afirma.

O erro de Lula, segundo ela, foi não ter aproveitado o período de bonança para diversificar a matriz produtiva brasileira e reduzir nossa dependência de commodities. Outro erro: “achar que era possível seguir no processo de distribuição de renda, sem tocar no topo da pirâmide social”. Ela ressalta ainda que o uso excessivo da apreciação do real e da taxa de juros elevada para manter a inflação sob controle exigiu que, mais para frente, o patamar da moeda brasileira ficasse insustentável.

A economista avalia que Dilma, com as bases problemáticas herdadas de Lula, piorou tudo com a Agenda Fiesp, uma aposta alta na política de desonerações para manter o desemprego baixo e incentivar a recomposição da indústria. “À época, a pergunta foi: por que um governo associado à centro-esquerda fez algo que parte da ideia de que, ao beneficiar os de cima, se chega aos de baixo?. Isso é muito combatido pelos economistas de esquerda no mundo todo”.

Entre mortos e feridos, o Brasil atravessou a década frustrada e entra agora em um período que pode ser produtivo. Ainda que desafios como o cenário global incerto e um presidente falador possam aparecer, uma nova onda de crescimento se avizinha. E o próprio sistema do capitalismo, cíclico como é, tende a reagir após um arrocho.

Para aproveitarmos isso, precisamos enxergar no horizonte. “A Coreia do Sul e a China montaram planos econômicos de décadas e o resultado está ai. Investiram muito em educação, cultura e tecnologia”, diz La Veiga. Especialista em contas públicas, Carlos Rocco reforça que é necessário mais pragmatismo e menos ideologia. “O Brasil precisa ser mais sério ao se perguntar: ‘Em que eu quero ser lembrado economicamente?’. Se a resposta for commodities, é preciso liberar crédito para o produtor rural, rever diretrizes de sustentabilidade e o governo investir nisso”, diz. “Mas, se for reequipar a indústria para ser um exportador, temos de investir em tecnologia. É essencial mostrarmos ao mundo quem somos, com políticas de longo prazo claras e financiamento público direcionado”.

Laura Carvalho ressalta que, enquanto a economia não reage, o governo pode reduzir a tensão social de outra forma. “A diferença entre salários e preços pressionam a inflação. Se as pessoas tiverem acesso a serviço público de qualidade (como saúde, educação e transporte), cria-se uma renda de forma indireta para elas. A gratuidade desses serviços permite que haja redistribuição da renda e ganho de poder de compra aos menos abastados, mesmo sem aumento de salário”. Depende de vontade política.