As trombadas entre o presidente eleito Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, o futuro ministro da Economia, estão menos frequentes, mas ainda dão dores de cabeça a ambos. Na segunda-feira 5, Bolsonaro declarou que a “dívida pública não era impagável, mas precisava ser negociável”. No dia seguinte, Guedes teve de vir a campo e dizer que não era bem assim — e que a ideia estava “fora de questão”.

“Negociação” não é exatamente calote, mas é quase isso: indica que pode haver atraso nos pagamentos dos títulos e que o dinheiro vai levar mais tempo para chegar à mão dos credores. Os cálculos sobre o total da dívida do governo brasileiro variam, mas é provável que ela encerre 2018 entre R$ 3,78 e R$ 3,98 trilhões. Para entender a dimensão do problema, imagine a seguinte equação: se cada um dos 209 milhões de brasileiros precisasse pagar uma parte desse valor, teria uma dívida pessoal de quase R$ 20 mil. Como o salário médio é de R$ 2,1 mil, cada um de nós precisaria trabalhar nove meses sem receber e sem gastar um centavo para pagar a parte que lhe cabe. Essa monumental força de trabalho teria de incluir todo mundo: crianças, idosos, doentes, deficientes. E o pior é que, ao fim de nove meses, ainda seria necessário trabalhar mais três ou quatro meses, pois so saldo devedor já teria aumentado. E assim sucessivamente.

A dívida pública brasileira — ou seja, a soma de tudo o que o governo gasta — corresponde a 77,3% do PIB e pode chegar a 92,7% até 2020, segundo cálculos do FMI. “Isso não é problema”, diz o economista Amir Khair, mestre em finanças públicas pela Fundação Getulio Vargas e ex-secretário de finanças da cidade de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989-1993). “A dívida pública do Japão corresponde a 200% do PIB. A diferença é que lá a taxa de juros é negativa. Ninguém opera com juros de 30%, como aqui. O Brasil é o paraíso da agiotagem.” Para Khair, o problema da dívida são os juros bancários, que correspondem a 80% do total. Segundo ele, cada vez que o Banco Central mantém em alta a taxa Selic para controlar a inflação, o governo “dá um tiro no pé”, pois eleva o próprio saldo devedor. “Para controlar a dívida pública é preciso combinar três fatores: controle de despesas, aumento da arrecadação e corte de juros”, prossegue ele.

Essa opinião não é consensual. O economista José Augusto Arantes Savanisi, que foi superintendente do Instituto de Pesquisa Econônica Aplicada (Ipea) e coordenador técnico das negociações com o FMI nos anos 80, discorda totalmente. “Ninguém vai dar dinheiro para quem não consegue pagar”, diz ele. “Os juros no Japão e nos Estados Unidos são baixos porque o credor não teme levar calote. Essa ameaça só aparece quando se tem a despesa maior que a receita.”

Savasini e Khair não coincidem no diagnóstico, mas têm opinião igual sobre qual é o nó a ser desatado pelo futuro governo: a Previdência Social, que hoje leva13%do PIB nacional. A conta é simples: em breve, o País terá mais aposentados do que contribuintes. Como a economia continua estagnada, a arrecadação não sobe, mas, mesmo assim, as despesas do estado continuam a crescer. O Brasil só não foi buscar ajuda no FMI, como fez a vizinha Argentina, porque alguns índices nos são favoráveis, caso da inflação sob controle e o volume das reservas cambiais, que estão em US$ 381,7 bilhões. Apesar dessa ligeira vantagem em relação ao país vizinho, Savanisi é taxativo: se a idade mínima para a aposentadoria não for revista na urgente reforma da previdência, não há solução para a dívida pública.

E o Brasil precisa não apenas de uma grande reforma da previdência, mas também de várias mini-reformas na maioria dos estados da federação. Como Amir Khair observa, o principal problema não é da esfera federal, mas sim estadual. “Estudos mostram que a previdência federal é cadente até pelo menos 2060. O problema são os estados, onde a situação da é crítica”, diz ele. No final de 2017, o déficit total dos Estados brasileiros bateu em R$ 790 bilhões. Na quarta-feira 14, o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciou em reunião com governadores que “algumas medidas amargas terão de ser tomadas” para que o Brasil não siga o caminho da Grécia.

Dos 27 estados, apenas 13 têm capacidade de pagamento para receber novos recursos da União, segundo o Tesouro Nacional. “Se o problema da dívida não for resolvido, a taxa de crescimento vai continuar baixa. O capital que sobra ao tesouro para investimento é ridículo, praticamente inexistente…”, conclui José Augusto Arantes Savasini. Amir Khair discorda também nesse quesito: “Para resolver a dívida pública, basta combater a taxa de juros e para isso é preciso enfrentar o cartel dos bancos.” Enquanto não se chega a um consenso, a dívida pública segue crescendo…