02/08/2019 - 11:00
Uma cerimônia em comemoração aos 200 dias de Jair Bolsonaro na presidência reuniu seu vice Hamilton Mourão, ministros do governo, parlamentares aliados e convidados. No encontro, foram assinados diversos projetos de lei. Dentre eles, um soou como ameaça aos representantes do setor audiovisual. Em 18 de julho, um decreto transferiu o Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. Bolsonaro também discutiu com Osmar Terra, ministro da Cidadania, a transferência da Agência Nacional do Cinema (Ancine) do Rio de Janeiro para Brasília. A mudança será concretizada até o início de setembro. Segundo o governo, a estratégia tem como intuito “fortalecer a articulação e fomentar políticas públicas”.
Jair Bolsonaro ainda disparou petardos contra obras financiadas com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que é gerido pela agência reguladora. Chamou de “absurdos” projetos como o reality show Born To Be Fashion, sobre a jornada de transexuais no mundo da moda; e o filme Bruna Surfistinha (2011), de Marcus Baldini. Exigiu mais controle sobre as propostas aprovadas daqui para frente: “Se não puder ter um filtro, nós extinguiremos a Ancine”, disparou.
Criada em 6 de setembro de 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a Ancine foi uma aposta para diminuir a intervenção estatal na economia. Assim como ela, outras autarquias criadas entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000 foram a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Eleito com uma proposta econômica liberal e uma agenda conservadora nos costumes, Bolsonaro junta essas duas coisas quando fala da Ancine. Ele quer desregulamentar o setor e, no caso de extinção do órgão, distribuir suas atuais atribuições entre as secretarias subordinadas à especial de Cultura, como a de Audiovisual e a de Fomento e Incentivo. “Muitas pessoas têm uma visão rasteira sobre o que é a Ancine”, diz a produtora Mariza Leão, fundadora da Morena Filmes. “A Ancine é fundamental para criar equilíbrio no mercado audiovisual, com regras e normas. Ela não dá dinheiro. O que ela faz é uma análise técnica e orçamentária sobre os projetos.”
TERRA ARRASADA Não são poucos os que classificam as ameaças do presidente como um disparate, mas outros se mostram preocupados. Em 22 de julho, mais de 800 artistas e intelectuais assinaram uma carta contra a criação de “filtros” na cultura. Para Bolsonaro, a Ancine deveria se dedicar apenas a “patrocinar” filmes de “heróis brasileiros”.
O setor audiovisual representa 0,57% do Produto Interno Bruto (PIB). Entre empregos diretos e indiretos, são cerca de 350 mil. Em 2018, a receita bruta de bilheteria do setor foi R$ 2,45 bilhões, o que representa um decréscimo de 9,5% em relação a 2017, melhor ano na base histórica. O valor gerado em bilheteria por obras nacionais foi de R$ 290,1 milhões, avanço de 20,5% na comparação com a temporada anterior. O número de lançamentos, inclusive, cresce ano a ano.
Em 2018, 480 filmes estrearam no País, sendo que 185 obras são nacionais. “A Ancine é fundamental para o cinema e o audiovisual nacional”, diz Felipe Lopes, diretor da distribuidora nacional Vitrine Filmes. “A partir dela, foi criado um setor que gera emprego e tem impacto de quase R$ 30 bilhões para a economia do País. Muitos questionam o porquê de se ter investimento para o setor, mas poucos sabem que até grandes franquias de super-heróis são feitas com incentivos”, complementa.
A principal crítica de Bolsonaro à Ancine é que o órgão teria sido aparelhado em governos anteriores e passado anos sem prestar contas sobre suas atividades. “A Ancine tem seus vícios, como muitas empresas estatais e até privadas também têm. Não é um modelo perfeito. Mas é preciso entender que ela não é uma agência de governo. Ela não pode aprovar projetos somente por questões ideológicas”, diz Paulo Sérgio Almeida, diretor do portal Filme B. “Vai ser terra arrasada se a Ancine deixar de existir. Todos vão perder”. Procurado por DINHEIRO, Christian de Castro, presidente da agência reguladora, preferiu não se posicionar.
Depois das críticas públicas de Jair Bolsonaro, a Ancine autorizou que o projeto Nem Tudo se Desfaz, de Josias Teófilo, mesmo autor de um documentário sobre Olavo de Carvalho, possa captar R$ 530 mil. A produção, considerada “o outro lado da história” contada pela cineasta Petra Costa em Democracia em Vertigem, da Netflix, é um documentário sobre o atual presidente e o avanço da onda conservadora no País, impulsionada pelas manifestações populares em junho de 2013.