Uma cerimônia em comemoração aos 200 dias de Jair Bolsonaro na presidência reuniu seu vice Hamilton Mourão, ministros do governo, parlamentares aliados e convidados. No encontro, foram assinados diversos projetos de lei. Dentre eles, um soou como ameaça aos representantes do setor audiovisual. Em 18 de julho, um decreto transferiu o Conselho Superior do Cinema do Ministério da Cidadania para a Casa Civil. Bolsonaro também discutiu com Osmar Terra, ministro da Cidadania, a transferência da Agência Nacional do Cinema (Ancine) do Rio de Janeiro para Brasília. A mudança será concretizada até o início de setembro. Segundo o governo, a estratégia tem como intuito “fortalecer a articulação e fomentar políticas públicas”.

Jair Bolsonaro ainda disparou petardos contra obras financiadas com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), que é gerido pela agência reguladora. Chamou de “absurdos” projetos como o reality show Born To Be Fashion, sobre a jornada de transexuais no mundo da moda; e o filme Bruna Surfistinha (2011), de Marcus Baldini. Exigiu mais controle sobre as propostas aprovadas daqui para frente: “Se não puder ter um filtro, nós extinguiremos a Ancine”, disparou.

Criada em 6 de setembro de 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, a Ancine foi uma aposta para diminuir a intervenção estatal na economia. Assim como ela, outras autarquias criadas entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000 foram a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Eleito com uma proposta econômica liberal e uma agenda conservadora nos costumes, Bolsonaro junta essas duas coisas quando fala da Ancine. Ele quer desregulamentar o setor e, no caso de extinção do órgão, distribuir suas atuais atribuições entre as secretarias subordinadas à especial de Cultura, como a de Audiovisual e a de Fomento e Incentivo. “Muitas pessoas têm uma visão rasteira sobre o que é a Ancine”, diz a produtora Mariza Leão, fundadora da Morena Filmes. “A Ancine é fundamental para criar equilíbrio no mercado audiovisual, com regras e normas. Ela não dá dinheiro. O que ela faz é uma análise técnica e orçamentária sobre os projetos.”

Conservadorismo: para Bolsonaro, filmes como “Bruna Surfistinha” não serão mais admitidos (Crédito:Divulgação)

TERRA ARRASADA Não são poucos os que classificam as ameaças do presidente como um disparate, mas outros se mostram preocupados. Em 22 de julho, mais de 800 artistas e intelectuais assinaram uma carta contra a criação de “filtros” na cultura. Para Bolsonaro, a Ancine deveria se dedicar apenas a “patrocinar” filmes de “heróis brasileiros”.

O setor audiovisual representa 0,57% do Produto Interno Bruto (PIB). Entre empregos diretos e indiretos, são cerca de 350 mil. Em 2018, a receita bruta de bilheteria do setor foi R$ 2,45 bilhões, o que representa um decréscimo de 9,5% em relação a 2017, melhor ano na base histórica. O valor gerado em bilheteria por obras nacionais foi de R$ 290,1 milhões, avanço de 20,5% na comparação com a temporada anterior. O número de lançamentos, inclusive, cresce ano a ano.

Em 2018, 480 filmes estrearam no País, sendo que 185 obras são nacionais. “A Ancine é fundamental para o cinema e o audiovisual nacional”, diz Felipe Lopes, diretor da distribuidora nacional Vitrine Filmes. “A partir dela, foi criado um setor que gera emprego e tem impacto de quase R$ 30 bilhões para a economia do País. Muitos questionam o porquê de se ter investimento para o setor, mas poucos sabem que até grandes franquias de super-heróis são feitas com incentivos”, complementa.

A principal crítica de Bolsonaro à Ancine é que o órgão teria sido aparelhado em governos anteriores e passado anos sem prestar contas sobre suas atividades. “A Ancine tem seus vícios, como muitas empresas estatais e até privadas também têm. Não é um modelo perfeito. Mas é preciso entender que ela não é uma agência de governo. Ela não pode aprovar projetos somente por questões ideológicas”, diz Paulo Sérgio Almeida, diretor do portal Filme B. “Vai ser terra arrasada se a Ancine deixar de existir. Todos vão perder”. Procurado por DINHEIRO, Christian de Castro, presidente da agência reguladora, preferiu não se posicionar.

Depois das críticas públicas de Jair Bolsonaro, a Ancine autorizou que o projeto Nem Tudo se Desfaz, de Josias Teófilo, mesmo autor de um documentário sobre Olavo de Carvalho, possa captar R$ 530 mil. A produção, considerada “o outro lado da história” contada pela cineasta Petra Costa em Democracia em Vertigem, da Netflix, é um documentário sobre o atual presidente e o avanço da onda conservadora no País, impulsionada pelas manifestações populares em junho de 2013.