A questão que envolve a mentira na política é tão antiga quanto à criação da política em si. Apesar de discutida desde a Grécia antiga, foi com o italiano Nicolau Maquiavel que a filosofia da mentira como forma de poder ganhou os contornos atuais. Dizia o escritor de O Príncipe que para vencer seus oponentes “recursos como mentiras, ludibriações e astúcias são fundamentais”. Mas o próprio Maquiavel ressaltou, em seu manual político, que só os bons líderes conduzem (e sustentam) uma narrativa leviana. O que aconteceu no púlpito da Organização das Nações Unidas (ONU) no discurso do presidente Jair Bolsonaro é a prova disso. O presidente usou afirmações falaciosas que só funcionam em seu núcleo mais duro de apoio, e aos olhos do mundo, oscilou entre a chacota e a repulsa.

O resultado disso é um mercado investidor ainda mais receoso, empresários revendo planos e a contaminação de até 75% dos acordos bilaterais que o Brasil discute hoje. A estimativa da perda de acordos bilaterais (sejam comerciais, de troca de tecnologia ou culturais) é uma estimativa com base nos números da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da Organização Mundial do Comércio (OMC). Segundo a entidade que representa os países mais ricos, relações bilaterais envolvem um processo de maturação da confiança entre as nações, e podem ser atrasados ou acelerados dependendo da percepção do mundo sobre os caminhos que determinada nação seguir. E os caminhos que Bolsonaro quer que o Brasil trilhe ficaram claros na terça-feira (21).

Havia uma expectativa grande quanto ao discurso. Por apoiadores, era esperada uma fala dura. O que seria um sinal de que o presidente não teria mudado de opiniões, e a “declaração à nação”, foi apenas uma jogada política, não um recuo. Entre os investidores, políticos e empresários, a fala seria a confirmação de um tom mais moderado e aberto para negociação ou aumento da distância entre o Brasil e outras nações.

No fim, o conteúdo do discurso muito se assemelhou às lives que o presidente faz toda quinta-feira para apoiadores. Um amontoado de informações mentirosas, distorcidas ou criadas para passar a sensação de que está tudo bem, mesmo não estando. O problema de levar esse discurso para um palanque mundial é que olhos muito mais treinados estão observando e tirando conclusões. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que não há qualquer negociação de acordo com o Brasil nesse momento, fala que foi repetida pelo por outros líderes, principalmente por Bolsonaro criticar o “passaporte sanitário”, um comprovante de vacinação para liberar viagens. A fala do brasileiro também desagradou líderes da União Europeia tanto da direita, quanto da esquerda

A CARTA ABERTA DE BIDEN Em seu discurso na ONU, Biden reforça as questões ambientais e, nos bastidores, diz não ter acordo comercial em negociação com o Brasil. (Crédito:POOL /Getty Images via AFP)

Na imprensa internacional, a repercussão foi igualmente negativa. “Provocativo”, “constrangedor” e “negacionista” foram alguns dos adjetivos usados para definir o presidente. No The New York Times, a menção aos tratamentos comprovadamente ineficazes contra a Covid foi o destaque: “O presidente do Brasil liderou uma das respostas mais criticadas do mundo à pandemia.” O português Diário de Notícias ressaltou que o brasileiro falou para sua base de apoio interno e classificou o discurso de recheado de informações imprecisas sobre a economia.

O The Washington Post afirmou que o presidente brasileiro quebrou “o código de honra” da ONU ao aparecer no evento sem vacina. O inglês The Guardian chamou Bolsonaro de figura controversa. Também foi noticiado na imprensa britânica o encontro entre Bolsonaro e Boris Johnson, primeiro ministro do Reino Unido. Em uma situação constrangedora, Johnson fala para Bolsonaro que tomou as duas doses da AstraZeneca e diz que Bolsonaro também deveria tomar. O brasileiro respondeu: “Ainda não, ainda não”, fazendo o sinal negativo com o dedo indicador. O conservador The Maily chamou de vergonhoso o encontro do primeiro ministro com Bolsonaro, dizendo que não era papel de Johnson “implorar para que o brasileiro tomasse a vacina”. Nos corredores da Assembleia Geral da ONU, o tom das lideranças ao falar de Bolsonaro era de repulsa ou chacota.

CONTAMINADO E CONTAMINANDO Nos EUA, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, confronta críticos ao governo, come pizza na rua e precisa ficar isolado porque está contaminado com Covid-19. (Crédito:Walterson Rosa-MS)

SEM NOVIDADES E se em Nova York o presidente pegou uma plateia que não esperava esse discurso, no Brasil não houve surpresas. “O discurso de Bolsonaro frustra as pessoas moderadas, mas de maneira nenhuma surpreende”, disse Rômulo Picolli, cientista político e professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo. “Foi um discurso dirigido para o Brasil. Na verdade, era para o núcleo duro do bolsonarismo. Os frustrados com o recuo de 7 de setembro”, disse. Caetano Neli Caran, que foi assistente de chancelaria na embaixada brasileira nos Estados Unidos de 1998 a 2010, diz que as falas mais polêmicas do discurso “dificilmente tem influência dos diplomatas brasileiros”. Segundo ele, é comum que diplomatas auxiliem os presidentes em discursos como esses. “Ele poderia ter feito um discurso escrito por uma equipe técnica, mas preferiu afrontar”, afirmou. Fontes que estavam na comitiva presidencial afirmaram que 90% do texto foi redigido do Itamaraty, mas as partes mais radicais foram incluídas pelo presidente e seu filho Eduardo Bolsonaro. Eles teriam sido responsáveis por tirar falas sobre a “diplomacia da vacina” e compromisso com o meio ambiente.

Depois da repercussão negativa, Bolsonaro fez por lá o mesmo que faz por aqui. Ficou irritado, cancelou encontros públicos e resolveu voltar mais cedo dos Estados Unidos. Todos da comitiva retornaram, com exceção do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que em sua passagem pela ONU simbolizou o governo Bolsonaro: comeu pizza na rua, mostrou o dedo para críticos, testou positivo para Covid e, já de quarentena na terra do Tio Sam, postou nas redes sociais uma fala antivacina — mas, assim como seu chefe em 7 de setembro, recuou antes de ter (mais) problemas judiciais.