Dois fenômenos sucessivos e sintomáticos. No primeiro, Paulo Guedes diz a empresários do segmento de supermercados que eles não deveriam aumentar os preços. “Por uns dois ou três meses.” Em qualquer cartilha de teoria econômica em prática no mundo moderno pedir para que um preço não seja elevado por uns três meses é o equivalente a pedir para um ser humano que não respire por uns três meses. Contraria a lógica e a física. O problema de andar tanto tempo com a elite bolsonarista é que você passa a ser um deles. Aparentemente o ministro foi no embalo do que o líder da entidade já havia pedido a seus colegas da indústria… controlar os preços. Das duas uma: ou o empresariado brasileiro aumenta preço por maldade, ou aumenta por necessidade. Se está dando para segurar o reajuste, então é maldade.

Pelo mesmo motivo redução de IPI ou uma agenda de renúncia fiscal ampliada não tomba na ponta em preço menor, ou produtividade maior, que daria na mesma. Em tempos pandêmicos — mas não apenas neles — esse dinheiro fica no bolso mesmo. Vai para o bottom line. Acontecerá algo parecido com o tal de teto para o ICMS. A probabilidade maior é de que na bomba, ou na conta de energia, o efeito mal seja percebido. E se for, será consumido pela inflação. Porque por mais que ela caia, ainda ficará numa órbita superior ao dobro da meta, esfolando o bolso dos que não têm.

Basta olhar o placar e ver que há algo de errado quando 6 senadores dizem sim e apenas 12 votam não — como o presidente da Casa não vota, sobraram três abstenções (curiosamente a de dois cearenses, Cid Gomes e Tasso Jereissati). Quem entende de Brasília sabe foi aprovado um teatro para a opinião pública. Um dinheiro que alivia encher o tanque, mas que não colocará comida na frente dos 33 milhões que passam fome.

Pior. Vai deixar a boca deles ainda mais longe de comer algo. Porque a decisão do Congresso pressionará as contas públicas e levará o Banco Central a mais rodadas de alta da Selic. O que deixará o dinheiro caro, que fará o empresário jogar na defesa e fará a economia patinar.

É de uma obviedade tão grande que somente o cinismo de quem ganha com isso pode explicar. Entre abril do ano passado e abril deste ano a grana líquida aplicada em títulos do Tesouro cresceu 140%, de R$ 613,4 milhões para R$ 1,474 bilhão. Isso significa dindim pesado buscando os reflexos da alta do juro. Dinheiro de investidores institucionais. E dinheiro dos investidores qualificados — como o mercado chama quem tem mais de R$ 1 milhão em produtos financeiros.

Esse descontrole fiscal tem a assinatura dupla e enlameada de Paulo Guedes & Jair Bolsonaro. O combo é uma cópia inviolável do pensamento econômico de Dilma Rousseff. Não à toa Lula tem falado os diabos para o mercado — desde que irá destruir Teto de Gastos até reformar as reformas. Só não fala de Dilma Rousseff. E se cumprir o que promete sobre o Teto, nem será original, já que ele já está devidamente destruído. Por Paulo & Jair.

Falei do primeiro fenômeno, o de um ministro antiliberal em pele de liberal, que sugere congelar preços. Mas houve o segundo fenômeno, também dito a empresários e investidores. Foi igualmente degradante e teve o próprio presidente da República como personagem principal. Ele afirmou que “não leva jeito para a coisa”. A coisa, no caso, é a cadeira presidencial, o seu papel. Esse topo de trapaça — que não mais causa surpresa ou espanto nas pessoas — é o maior dos sintomas de que não apenas as relações entre os poderes estão esgarçadas. A sociedade brasileira perdeu a noção.

Alguém é capaz de imaginar um CEO declarando abertamente que não nasceu para aquilo? Ou mais: um cirurgião? Um piloto de avião? Seu advogado? O goleiro do meu time? Não. Mas o presidente da República pode. Na verdade, a partir do resultado de outubro será preciso uma implosão de qualquer resquício da estrutura político-administrativa brasileira. Acabar com o lugar em que o cara que ama o Estado é do PL.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.