Discutida desde a era dos sofistas, na Grécia Antiga, a pobreza — assim como as formas de enfrentá-la — ocupa um papel central no pensamento humano. Do iluminista Jean-Jacques Rousseau ao teórico do comunismo Karl Marx, o entendimento dessa “filha bastarda do processo civilizatório” tem rendido tratados teóricos, mas ainda carece de soluções práticas. No Brasil, a história da pobreza se confunde com a do nascimento da nação, e os poucos avanços conquistados no começo do século 21 já foram perdidos. Isso não é culpa de um ou outro presidente, e nem integralmente da pandemia. Desde 2016, o número de pessoas na extrema pobreza cresce substancialmente no Brasil, e já ultrapassa 18 milhões de indivíduos. Para resolver a situação não há resposta simples. O caminho passa pelo comprometimento conjunto do Estado, das empresas e da sociedade.
Para que se entenda a pobreza, é preciso pensar em sua origem na história. Já na Antiguidade, e até o fim da Idade Média, a ideia de pessoa pobre não estava atrelada apenas aos recursos financeiros, mas a um conceito: “ser menos”. Mulheres e escravos eram pobres por serem considerados cidadãos de segunda categoria na Grécia. Sob o comando da igreja, os pobres da Idade Média eram aqueles afastadados de Deus. Quando se consolida o iluminismo e o pensamento teocêntrico perde relevância social, a ideia de o que é ser pobre exige revisão. Nesse momento nasce a crença de que a pobreza não é fruto de uma decisão divina, mas incompetência de cada um em galgar o topo da pirâmide, como se a culpa de ser pobre fosse exclusivamente da própria pessoa.

É nessa época que surge também o Estado como garantidor de direitos básicos de subsistência. A mudança brusca na forma como a Europa passou a interpretar a pobreza atravessou os mares e chegou à América. No Brasil, a pobreza existe desde a colonização, quando surgem os primeiros registros de pessoas com fome. Desde então, a sociedade lida com mais ou menos pobres, dependendo do andar da economia. A primeira queda expressiva se deu apenas durante os anos 1990, quando o número de pessoas abaixo da linha da pobreza passou de 12% para 9% da população. Depois, com a estabilização do real, a primeira década do século 21 foi de diminuição substancial da pobreza, chegando, em 2009, a 6,5%.
No centro desse marco estava a criação de um projeto de transferência de renda, nascido com o nome Fome Zero. Segundo um dos criadores do programa, o economista Walter Belik, aquele foi o embrião do programa Bolsa Família. “Sabe por que o Bolsa Família não eliminou a fome de forma estrutural? Porque programas de transferência de renda são apenas o primeiro passo. Quem tem fome tem pressa.”

E esse segundo passo jamais foi dado. Pela régua da Organização das Nações Unidas (ONU) entram no chamado Mapa da Fome países que possuem mais de 4% da população em situação de vulnerabilidade alimentar. No Brasil, o indicador ficou abaixo desse patamar em 2013 (em 3,2%). Mas a felicidade durou pouco. Em 2018, antes da pandemia, o indicador já estava próximo de 5% dos brasileiros com fome. Agora, esse número é ainda maior.

“A transferência de renda é apenas o primeiro passo. Quem tem fome tem pressa” Walter Belik Economista que participou do fome zero (Crédito:Divulgação)

DE VOLTA A 2004 Segundo o doutor em economia e professor Renato Maluf, pesquisador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e referência no assunto, o progresso na redução da fome durante a primeira década do século 21 foi rapidamente invertido entre 2014 e 2018, período sob Dilma Rousseff e Michel Temer, com redução expressiva da segurança alimentar e aumento da vulnerabilidade social. “Quando chegou a pandemia, os indicadores pioraram ainda mais em apenas dois anos”, disse. Segundo o levantamento da Penssan, a quantidade de pessoas que em 2020 estavam em situação de insegurança alimentar moderada e grave somou 116,8 milhões, número que, proporcionalmente, retorna ao verificado em 2004.

Com o retorno ao Mapa da Fome, algo inédito entre os países democráticos nas últimas décadas, a discussão volta para o primeiro patamar. As pessoas precisam comer. Para Elis Rodrigues Sá, que foi secretária de Ciências Sociais e Políticas Públicas, órgão ligado ao extinto Ministério do Desenvolvimento Social, o caminho para garantir a comida ficou mais tortuoso. “Houve um desmonte de políticas de fortalecimento social desde 2016, então não é só uma questão de ser Auxílio Brasil ou Bolsa Família. Falta estrutura”, afirmou. Entre os exemplos de ações extintas ou desidratadas, ela citou o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que perdeu 35% do orçamento, o fim da Secretaria de Agricultura Familiar, e o fim do programa de estoques de regulação da Conab. Também foi extinto o Programa de Aquisição de Alimentos, que chegou a comprar R$ 1 bilhão em comida para distribuição.

Com garantia de alimentação e renda para as pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar, começa a engrenar o motor econômico. Pessoas saudáveis e com dinheiro gastam mais, e puxam um ciclo virtuoso de mais investimentos, mais emprego e maior atividade econômica. Segundo Elis, o benefício é ainda maior para o poder público. “Pessoas alimentadas recorrem menos à saúde pública, usam melhor as redes de ensino, reduzem os indicadores de violência e são mais produtivas no trabalho. A pobreza custa caro para o Estado”, disse.

Mas, se a transferência de renda por si só já estimula a economia, por que não houve uma reação substancial durante os auxílios emergenciais? Quem responde é Sérgio Nara Santos, ex-conselheiro e representante da América do Sul na FAO (Organização para Alimentos e Agricultura, na sigla em inglês). Segundo o economista, o combate à pobreza precisa ser feito em pelo menos três frentes simultâneas. “Repassar o dinheiro, fazer com que ele chegue a todos os setores e não só aos bancos, e garantir a confiança do empresariado de que a renda extra se tornará fixa”, disse.

“Com a pandemia, conseguimos reverter de forma ainda mais acelerada os avanços conquistados nos últimos anos” Renato Maluf Rede Penssan (Crédito:Divulgação)

ONDE ESTAMOS? Na prática, só a primeira das três premissas foi concretizada desde 2015, o que não bastou para dar confiança ao empresário, que seguiu retraído esperando um momento melhor para contratar, investir ou ampliar suas operações. “O empresariado é determinante nessa equação, porque vêm do mercado de trabalho as condições para que as pessoas não dependam do governo. Ganhem e gastem mais”, disse Nara Santos. “Hoje o empresariado está pressionado e tenso, não há clima de investimento.”

Prova disso é que o Índice de Confiança Empresarial (ICE), estudo realizado pela FGV-IBRE, caiu 2,5 pontos em janeiro e atingiu 91,6 pontos — o menor nível registrado desde abril de 2021, quando estava em 89,6 pontos.

Achar a fórmula que resulte no ponto de equilíbrio perfeito entre cobrar assistência do Estado, dar condições a todo cidadão para poder melhorar de vida e ter um empresariado que confie no futuro da economia talvez seja a epifania que faltou de Marx a Rousseau para elucidar por que o processo civilizatório gerou um filha bastarda.