Quatro dias antes da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), já era possível ver Nova York tomada por barreiras policiais. Quarteirões completamente fechados a uma distância de até sete quadras do prédio da instituição imitavam externamente o esquema de segurança do edifício-sede, semelhante aos aparatos de raio-x que perturbam passageiros em aeroportos. Tudo para evitar riscos às quase 200 delegações – e mais de 2 mil jornalistas – que se reúnem anualmente no fórum criado em 1947 para debater políticas globais. No encontro, dois atores costumam se destacar: o Brasil, pela tradição de ocupar o discurso de abertura, e os Estados Unidos, pelo peso de suas decisões sobre o resto do globo. Os discursos deste ano, realizados na terça-feira 19, escancararam a divergência entre a posição das duas nações sobre os debates em curso, um sinal de como a eleição de Donald Trump adicionou uma carga de complexidade imensurável para a geopolítica e a comunidade internacional.

Com uma linguagem diplomática, o presidente Michel Temer, símbolo da política tradicional, discursou sobre pleitos históricos do Brasil, como a defesa pela reforma no Conselho de Segurança. Ao todo, 14 siglas de acordos e instituições internacionais foram citadas, num endosso à tradição brasileira de defesa ao multilateralismo. O tema de comércio exterior foi um ponto alto e, ao mesmo tempo, uma crítica velada à retórica norte-americana, ao refutar “nacionalismos exacerbados” e rebater aventuras protecionistas. “Não é razoável supor que ideias que, no passado, já se mostraram equivocadas possam, agora, render bons frutos”, afirmou Temer. Um tom moderado foi usado para abordar a supressão de direitos na Venezuela e condenar as ambições militares na península coreana. Na área ambiental, defendeu o Acordo de Paris e causou polêmica ao usar dados extraoficiais para apontar uma queda no desmatamento.

Trump, a face da antipolítica americana, discursou em seguida, na sua primeira participação no fórum. Passou uma borracha nas ideias e começou do zero. Por outra direção. Pesou a mão na ameaça à Coreia do Norte, exacerbou o nacionalismo, disparou sobre instituições e omitiu temas por conveniência, como o Acordo de Paris. O discurso seguiu a linha da retórica adotada desde a campanha presidencial, cujo slogan, “Faça a América grande de novo”, foi levado à tribuna como uma fonte de inspiração aos outros membros. “Como presidente dos Estados Unidos, eu sempre vou colocar a América em primeiro lugar. Assim como vocês, como líderes dos seus países, sempre vão e sempre deveriam colocar o país de vocês primeiro”, afirmou Trump.

Desde que assumiu o posto, o presidente americano tem buscado cumprir suas promessas nessa direção, com posições radicais no comércio exterior (abandonando o Tratado Transpacífico, por exemplo), em imigração (endurecendo regras para a entrada de estrangeiros) e na sua relação com instituições multilaterais (no passado, ele chegou a acusar a ONU de ineficiência). Até agora, porém, suas palavras têm sido muito mais fortes do que suas ações. “Ele se faz de imprevisível, tem um discurso de mudança, mas não aconteceu muita ação ainda na prática”, afirma Joseph Uscinski, professor de Política Social da Universidade de Miami. Para ele, a retórica integra uma estratégia para atender a sua base, que deve ser relativizada por líderes mundiais.

Alta tensão: o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, avalia o lançamento de mísseis sobre o Japão. Segundo ele, o programa nuclear serve para equilibrar as forças com os EUA (Crédito:Kcna/AFP)

TENSÃO A nova diplomacia de Trump embute riscos elevados para a ordem mundial. Suas acusações contra a Coreia do Norte tornam um conflito armado cada vez mais iminente. “Se os Estados Unidos forem forçados a defender a si e seus aliados, não terão escolha a não ser destruir totalmente a Coreia do Norte”, afirmou Trump na ONU. Na quinta-feira 21, o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, disse que Trump é “desequilibrado” e “pagará caro” por suas ameaças. Embora os especialistas ressaltem a distância entre a retórica e as ações práticas pré-conflito, como a evacuação de cidadãos americanos na região, eles chamam atenção para o risco de um mal entendido (um falso alarme de míssil, por exemplo) deflagrar o uso de armas nucleares. “Trabalho há mais de 20 anos com o tema e eu nunca estive tão preocupado como estou agora em relação às crescentes tensões entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte”, afirma Daryl Kimball, diretor-executivo da Associação para o Controle de Armas.

Enquanto Trump patrocina a ideia de melhorar o arsenal nuclear americano, o Brasil, junto com emergentes como México e África do Sul, tenta concretizar o Tratado de Proibição de Armas Nucleares. O acordo, que é boicotado por potências como os Estados Unidos, foi enaltecido por Temer na ONU e ficou disponível para assinatura a partir da quarta-feira 20. Entre tantas visões diferentes, duas coincidências apareceram em ambos os discursos: a importância de reformas, um tema amplamente defendido por Temer nas poucas palavras que dedicou à política interna, e a crítica à escalada autoritária da Venezuela. A questão foi tema de um jantar entre os dois presidentes e outros convidados sulamericanos, na segunda-feira 18. No encontro, não foi possível tratar de pautas bilaterais de interesse brasileiro. Ainda em Nova York, Temer voltou a falar de economia, em encontros com investidores nos quais vendeu o plano de concessões e ressaltou o impacto de reformas. Enquanto o mundo se assusta com a retórica de Trump, há investidores interessados no Brasil.