Quando instituída a Constituição, em 1988, a ideia de tripartidação dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) refletia uma nação que deixava para trás décadas de ditadura militar. Era preciso dar autonomia para que cada ente republicano fosse capaz de fiscalizar seus próprios atos, impedindo golpes que partissem de uma das bases desse tripé. O modelo, adotado em grande parte das democracias do mundo, tem funcionado bem no Brasil – dois processos de impeachment pelo caminho ajudam a provar a tese. Até agora não se colocava em xeque o poder de cada um. Isso mudou na última semana, quando um vídeo compartilhado pela conta pessoal de WhatsApp do presidente Jair Bolsonaro convocava sua base aliada para uma manifestação pelo fechamento do Congresso. A atitude pode caracterizar crime de responsabilidade, mas, muito além disso, evidencia que a tensão entre os guardiões da Constituição nunca foi tão grande.

O vídeo compartilhado por Bolsonaro é assinado pelo Movimento Conservador, tem cerca de 1 minuto e 30 segundos, mostra a facada que vitimou o presidente na campanha eleitoral em 2018 e joga na Câmara dos Deputados e no Senado a pecha de pessoas que “lutam contra o povo brasileiro”. As imagens são acompanhadas de locução dramática dizendo que Bolsonaro quase morreu pelo País, e cabe a seus apoiadores um ato nas ruas no dia 15 de março.

Pedro Ladeira

Logo após vazar a informação de compartilhamento, não faltaram críticas ao presidente vindas do Legislativo e Judiciário. “Essa gravíssima conclamação, se realmente confirmada, revela a face sombria de um presidente da República que desconhece o valor da ordem constitucional, que ignora o sentido fundamental da separação de poderes, que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”, afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Melo.

Para o magistrado, Bolsonaro foi de inequívoca hostilidade aos demais Poderes e “traduz gesto de ominoso desapreço e de inaceitável degradação do princípio democrático”. Melo argumenta que embora um presidente possa muito, ele não pode tudo. “É vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República.”

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que estava na Espanha quando o vídeo foi compartilhado, pregou paz. “Só a democracia é capaz de absorver sem violência as diferenças da sociedade e unir a Nação pelo diálogo. Acima de tudo e de todos está o respeito às instituições democráticas.” Ainda que Bolsonaro tenha tentado contornar a situação ao dizer que jamais faria algo contra a democracia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) foi enfático. “Nenhum ataque à democracia será permitido no Parlamento, ainda que discordemos precisamos sempre buscar uma via republicana de diálogo”, disse, sem explicar exatamente quais medidas são cabíveis nesse caso.

“Nenhum ataque à democracia será permitido neste parlamento. Mesmo discordando, devemos sempre dialogar como fazem os bons republicanos”. Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), depois de ser questionado sobre o vídeo compartilhado por Bolsonaro sobre o fechamento do Congresso Nacional. (Crédito:Pedro Ladeira)

A insatisfação do governo com algumas medidas do Congresso não é de agora, e ainda que as Casas Legislativas sejam responsáveis por todas as mudanças estruturais econômicas vista nos últimos anos há no Planalto crítica sobre o andamento de propostas sensíveis ao presidente Bolsonaro e seus apoiadores, como o projeto de lei que libera mineração em terras indígenas. No dia 7 de fevereiro, em reunião com representantes indígenas, o presidente da Câmara se comprometeu a não avançar com o texto do governo. A postura de Maia foi mal vista pelo presidente, conforme sinalizou uma fonte próxima ao Clã Bolsonaro. “Houve ainda mudanças no projeto Anti-Crime, do ministro Sérgio Moro, e a ampliação da Carteira Verde e Amarela. O presidente olha com atenção essas questões”, disse à DINHEIRO um interlocutor do governo, sob condição de anonimato.

CHANTAGEM? A convocação para a manifestação ocorreu dias após o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e um dos homens fortes de Bolsonaro, ter um áudio captado em uma live no Facebook, organizado pela própria Secretaria. Segundo palavras do general, o Congresso faz chantagem com o governo. “Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. F***-se”, afirmou. Na ocasião, Maia também se manifestou sobre a fala do general.
“O ministro está falando como um jovem, um estudante”, disse o presidente da Câmara, lamentando ainda que “um ministro com tantos títulos tenha se transformado em um radical ideológico contra a democracia, contra o Parlamento.”

Para além de confirmar se o presidente cometeu crime de responsabilidade, ou como lidar com essas investidas antidemocráticas, o fato é que os três Poderes têm hoje focos distintos. O Executivo visa zerar a dívida pública e ajustar as contas, enquanto o Legislativo acelera uma agenda reformista. Há ainda os planos do Judiciário, que na figura do Supremo tem levado temas polêmicos a plenário. “É preciso ressaltar que o governo federal tem hoje pelo menos oito generais no mais alto escalão, e mesmo assim os poderes Legislativo e Judiciário se mostram autônomos e funcionais. É uma surpresa boa. Nossa democracia está sendo testada, e até agora ela parece sólida”, afirma o advogado constitucionalista Homero Brigatto, que por oito anos auxiliou o ex-ministro do STF Ayres Britto.

Do Judiciário ao Executivo Ministro Sergio Moro poderia ser a ponte que une os dois Poderes, mas parece ainda não ter dado conta do desafio. (Crédito:Pedro Ladeira)

Ainda que a democracia se mostre relativamente sólida, as investidas pouco republicanas mostram que é preciso, constantemente, revisar nossas bases. “As grandes democracias precisam ser vistas com um olhar crítico. Não porque devem acabar, mas porque precisam se atualizar com a sociedade”, afirma o historiador e pesquisador Jimmy Hayes, professor da North Carolina State University, nos Estados Unidos.

Para ele, o Brasil enfrenta uma crise de identidade. “Cada um dos Poderes quer ter influência sob o outro para se mostrar soberano”, diz. Na avaliação do pesquisador e autor de três livros sobre democracia representativa, esse momento é decisivo para o País. “É a hora da verdade. Em um ambiente de instabilidade democrática é quando os Poderes precisam mostrar seu apreço pela Constituição. Em 1964 o Brasil falhou.”

FIM DO IMPÉRIO O professor de gestão de políticas públicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Marco Magdo, lembra que a divisão em três Poderes vem de 1891 e foi entrando e saindo de cena conforme o País flertava com outros modelos de regime político. O conflito vem, então, desde o fim do Império. No começo do século 20 o Brasil fez acordo com a Inglaterra para construir ferrovias. O projeto foi aprovado pelo então presidente Rodrigues Alves e pelo Congresso, mas foi barrado pelo Judiciário. “Quase três décadas depois, já sob o regime Varguista, se descobriu que o Judiciário barrou o empréstimo para enfraquecer a imagem do presidente”, diz Marco Magdo.

Um dito popular evoca que “no olho por olho, todo mundo sai cego”. E é isso que está no horizonte. Enquanto o Congresso corre para tentar aprovar medidas reformistas, os deputados negociam pouco com o Supremo Tribunal Federal — e há grandes chances de várias decisões que deveriam ser dos parlamentares ficarem nas mãos dos ministros.

“Essa gravíssima conclamação, se confirmada, revela a face sombria de um presidente que desconhece o valor da ordem constitucional” Celso de Melo, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) avalia os riscos para democracia após convocação de Bolsonaro para manifestação de 15 de março. (Crédito:Alan Marques)

Exemplo disso será visto caso aprovada a reforma tributária. Com alguns setores da cadeia produtiva contestando a mudança, a decisão ficará nas mãos do STF. Há ainda a tentativa de diminuir o número de municípios brasileiros (dentro de uma proposta de reduzir o tamanho do Estado) o que também demandará interferência da mais alta Corte.

GARANTIR DIREITOS Tudo isso pouco tempo depois de o STF decidir transformar homofobia em crime, enquadrando como racismo sob alegação de que o Congresso não foi capaz de criar uma lei que abarcasse a comunidade LGBTI+. “Não podemos nos curvar à injustiça porque o Congresso não legislou. Precisamos garantir o direito das pessoas”, disse o presidente do Supremo, Dias Toffoli, durante o julgamento do caso. Essa decisão irritou os parlamentares, inclusive Maia, que rebateu. “O senhor ministro precisa cumprir o papel que lhe foi destinado, que é julgar, e não legislar.”

No limiar entre os poderes Judiciário e Executivo aparece o ministro da Justiça, Sérgio Moro. Ele, que protagonizou a Lava Jato e revelou esquemas de corrupção com partidos políticos e empresários, aceitou o convite de Bolsonaro e foi criticado pelo Legislativo por ultrapassar a barreira entre os Poderes. Moro, que poderia ser a ponte entre as Casas, se mostra pouco eficiente nessa interlocução, restando ao País apenas o compasso de espera para ver quanto o tripé democrático aguenta.

SAÍDA À FRANCESA: Diretamente da Espanha, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) prega a paz entre os Poderes da República. (Crédito:Renato Costa)