Na teledramaturgia, os mexicanos são mundialmente conhecidos por suas novelas melodramáticas, carregadas de episódios com grandes tragédias, traições e finais surpreendentes. A partir desta semana, eles poderão ser lembrados assim também no meio corporativo brasileiro. Uma investigação sigilosa, a qual a DINHEIRO teve acesso com exclusividade, aponta que a fabricante de eletrodomésticos Mabe, falida em 2016 com R$ 1,1 bilhão em dívidas, não fechou as portas em razão da crise econômica (como argumentado por sua diretoria à época), mas teria ido à bancarrota de forma premeditada pela matriz no México e seus sócios no Brasil. Entre eles, a subsidiária da gigante americana General Electric (GE), maior conglomerado industrial do mundo, com faturamento de US$ 121,6 bilhões no ano passado. Além dos empresários Gabriel Penteado e José Roberto Moura Penteado, ex-donos da Dako.

O mais surpreendente e decisivo capítulo da trama veio à tona na terça-feira, dia 2, após decisão da Justiça brasileira de bloquear em até R$ 1,1 bilhão os bens e as contas bancárias da GE no Brasil e dos seus executivos, da família Penteado e também dos controladores da Mabe México, os irmãos Jose Luis e Francisco Berrondo. “A Mabe Brasil, com a conivência e ingerência da família Penteado, do grupo GE e da Mabe México, havia se tornado palco de manobras empresariais espúrias e predatórias, práticas que drenaram os ativos da empresa e, ao fim, provocaram sua insolvência”, declarou o juiz André Forato Anhê, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sua sentença assinada na semana passada. “A documentação é extensa e substanciosa. São fortes os elementos carreados para estes autos, roborando as suspeitas levantadas pela administradora judicial, de confusão patrimonial, gestão fraudulenta, desvios de recursos financeiros, apropriação de ativos, controle de operações da falida e desvios de equipamentos.”

Vítimas da bancarrota: quase 2 mil funcionários perderam seus empregos com o fechamento das fábricas da Mabe em Campinas e Hortolândia (Crédito:Rodrigo Dionisio / Ag. Istoe)

A dilapidação programada da Mabe Brasil seguia uma complexa e intrincada engenharia contábil conhecida como transfer pricing. As fábricas da empresa em Campinas e Hortolândia, no interior paulista, produziam fogões, geladeiras, máquinas de lavar e microondas. Os produtos destinados ao mercado interno eram faturados e vendidos normalmente. Mas os itens para a exportação eram contabilizados como se tivessem sido produzidos pela Mabe México. Assim, 100% dos lucros eram contabilizados na matriz, enquanto os custos de produção ficavam no Brasil. Sem lucro, e apenas com despesas, as dívidas foram crescendo até a falência.

E-MAILS DELETADOS Com a empresa em recuperação judicial a partir de 2013, os desvios de ativos se intensificaram. A administradora, em posse de e-mails deletados, e que foram recuperados por empresas especializadas em perícias de crimes digitais, constatou que ao estabelecer o modelo de gestão baseado no transfer pricing (que consiste em alimentar a matriz com produtos subfaturados), os controladores, premeditadamente, sentenciaram a Mabe Brasil à morte. “Essa prática impunha à Mabe Brasil prejuízos massacrantes e insuportáveis, que cessariam apenas com a inevitável quebra, em 2016”, explicou o juiz, no processo.

Além do bloqueio de bens e recursos dos ex-sócios da Mabe no País, a Justiça determinou a desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida e a responsabilização civil dos envolvidos. Isso significa que eles poderão ter seus patrimônios pessoais bloqueados e arrestados, algo que a GE e a família Penteado estariam há anos tentando evitar, forjando suas saídas do capital da Mabe no Brasil. No caso dos Penteado, as investigações conduzidas pela consultoria americana de perícias digitais D.C. Page e pelo escritório brasileiro Krikor Kaysserlian, especializado em fraudes societárias internacionais, recuperam no servidor de computadores da Mabe e-mails apagados trocados entre 2013 e 2016. As mensagens sugerem que a abertura de offshores no Estado americano da Flórida, em nome dos Penteado, e a inclusão delas no capital da empresa brasileira seriam manobras premeditadas para evitar o bloqueio e confisco de patrimônio depois da falência da empresa. A artimanha, no entanto, pode prejudicar ainda mais a vida deles. A Justiça brasileira determinou o envio do processo à Corte dos Estados Unidos, que tende a seguir a decisão do nosso judiciário e bloquear bens e recursos da família também em bancos americanos.

Na mira da justiça: na sentença, o juiz reconhece a evidência de conspiração na falência da Mabe

Já a GE, que é acusada no processo de ter igualmente forjado sua saída da Mabe Brasil em 2012, teria continuado a operar na administração até o fechamento da empresa, em 2016, segundo apontado nos e-mails recuperados. “Mesmo tendo saído do capital social e deixado de associar sua marca à Mabe, a GE, por ser o grande grupo por trás da Mabe México, seguiu interferindo na gestão brasileira, da qual se aproveitava largamente”, acrescentou o juiz, em sua sentença.

Entre os maiores dos 1,6 mil credores da Mabe Brasil estão os bancos HSBC, adquirido pelo Bradesco em 2016, com calote R$ 74,7 milhões, e o Banco do Brasil, que deixou de receber R$ 67,6 milhões. As dívidas trabalhistas, de quase R$ 120 milhões, foram reduzidas após a venda das marcas Continental e Dako para a sueca Electrolux, em 2017, por R$ 78 milhões. As perdas causadas aos cofres públicos, em razão do não pagamento de impostos, alcançam R$ 524,6 milhões.

Embora a suposta estrutura fraudulenta de gestão da Mabe tenha vindo à tona somente nesta semana, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas e Região, Sidalino Orsi Júnior, afirma que era previsível a existência de irregularidades na empresa. “Todos nós sabíamos que havia maracutaia na administração da empresa, porque a diretoria nos apresentava prejuízos frequentes enquanto o mercado brasileiro de linha branca (fogões, geladeiras etc.) só crescia”, diz ele. “Temos convicção de que os mexicanos compraram as fábricas com o objetivo de quebrá-las.”

Juiz André Anhê: “A Mabe foi palco de manobras espúrias e predatórias” (Crédito:Marco Flavio)

Procurada pela DINHEIRO, a GE no Brasil não concedeu entrevista. Em nota, declarou apenas que “a GE informa que não comenta ações judiciais em andamento.” Os irmãos Berrondo, da Mabe México, não retornaram as ligações. Os advogados da família Penteado, porta-vozes dos acusados nesse processo, não foram encontrados para comentar o caso. Já o diretor da Capital Administradora Judicial, Luís Cláudio Montoro, responsável por conduzir as investigações de fraude e gestão da massa falida, enviou uma nota: “Nossa expectativa é que esse processo de investigação, descobertas e sentença funcionem como um educador de mercado, pensando em futuras ações, para que eventuais fraudes não deixem de ser punidas e até mesmo inibidas.”

Até o fechamento desta edição, nenhuma das partes acusadas – GE, irmãos Berrondo (Mabe México) e família Penteado – havia apresentado recurso. Somente a partir da próxima semana, após o recebimento dos papéis da Justiça brasileira, a Corte americana deverá se manifestar sobre o episódio. Se o pedido de bloqueio de bens dos Berrondo e dos Penteado for acatado nos Estados Unidos, o enredo da Mabe Brasil provavelmente terá um desfecho inesperado. Em vez de novela mexicana, pode virar um filme de gângster.