Parece que foi no século passado. De certa forma, foi. Mais para a Idade Média, até. Mas no calendário gregoriano a data era 30 de janeiro. O domingão em que o presidente JB decidiu comer churrasco com farofa em Brasília. Rolou vídeo. Rolou foto. Para quem perdeu a cena (ou, dependendo do ponto de vista, ganhou ao não vê-la), basta digitar no Google “bolsonaro+farofa” que 6 milhões de páginas tratarão do tema. O que nosso delegado maior conseguiu com a sequência de pasto dominical foi o mesmo que conseguiu conduzindo o País em três anos: espalhar farofa num retrato pavoroso. Pelo chão, pela calça, nas botas. Três dias depois tentou se explicar. “Sei que não sou um exemplo para um montão de coisa. Comendo farofa e galinha outro dia, dei um arroto lá que… lamento. Sempre fui assim.” O trecho tá lá no site do governo. Dia 2 do mês 2 do ano de 2022. Esse colapso estético tem desdobramentos éticos e técnicos. Pior. Mostra muito quem somos.

Para Joseph Henrich, professor de biologia evolutiva humana de Harvard (EUA) e ex-professor de psicologia e economia na Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), autor de The WEIRDest People in the World (2020), “uma série de diferenças psicológicas surgiu na Europa Ocidental” e isso levou a implicações “para a compreensão de prosperidade econômica moderna, inovação, direito, democracia e ciência”. Em resumo, não seremos todos nós no planeta a vivermos em sociedades ditas modernas. Entre outros pontos, o livro traz um estudo que correlaciona países em que há uma abundância do casamento entre primos e a fragilidade de suas democracias – quando elas existem. Há inúmeros outros argumentos, todos baseados em dados ou pesquisas, que tentam dizer que determinados grupos são mais propensos a determinados comportamentos, e que isso leva a instituições mais ou menos sólidas. Weird, palavra em inglês para esquisito, ou estranho, é no caso do livro de Henrich acrônimo de Western-Educated-Industrialized-Rich-Democratic (ocidental, educado, industrializado, rico e democrático).

Independentemente de concordamos ou não com Henrich, o que ele traz é que componentes ancestrais e comportamentais são definidores de como um país é. E muito do que virá a ser. Não acredito que exista um determinismo: por termos abraçados no Brasil a democracia (de voto) há três décadas viraremos a Suécia algum dia. Não existe essa linearidade na história de ninguém. Nem dos países. Ao escolhermos para ocupar a Presidência um espalhador de farofa a gente não cometeu um gesto fortuito ou aleatório, um ‘protesto-a-tudo-o-que-acontecia-na-política’. Fomos mais de 57 milhões fazendo essa escolha. Os pontos trazidos por Henrich têm muito mais a ver em olharmos de forma analítica o que somos para sabermos do que precisamos.

Aí sim fica evidente que nossa maior carência é estética. O filósofo Immanuel Kant (1724-1804) dedicou boa parte de seu tempo e de sua obra a mostrar que o julgamento estético tem profunda conexão com o julgamento moral. “É apenas em sociedade que lhe ocorre ser não apenas um homem, mas um homem refinado segundo sua espécie (o início da civilização).” E foi definitivo ao dizer que “o belo é o símbolo do bem moral”. Por oposição, o feio é imoral. Não se trata só de farofa em churrasco. O combo traz defender torturador, supostamente curtir rachadinhas, dizer que usava dinheiro público do auxílio moradia para sexo… e, já na cadeira de presidente, ser grosseiro com a primeira-dama francesa, com os chineses, o Mercosul, a ciência, a Covid, a economia, a guerra, o preço dos combustíveis e os bons modos em geral.
Num país em que o Partido Liberal, o de JB, ocupa a diretoria de banco estatal e defende qualquer coisa, menos o liberalismo, tudo pode parecer normalidade. Inclusive espalhar farofa por aí. Sem a volta da estética como pilar ético, não nos sobrará nem a técnica. Gosto se discute, sim. Só que leva tempo e dá trabalho. Temos seis meses para tanto.

Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO