Em conflito quase permanente, o Mercosul vive uma crise sem precedentes, que ameaça a própria existência do acordo, criado em 1991. Com a decisão do governo argentino de abandonar as negociações para novos tratados de livre comércio (TLCs) que os vizinhos tentam promover com Coreia do Sul, Canadá, Índia, Líbano e Cingapura, começam a surgir dúvidas em relação à longevidade do grupo. Mesmo que o Paraguai, que detém a presidência temporária do bloco, esteja avaliando “medidas jurídicas, institucionais e operacionais contra a Argentina”, os efeitos colaterais da decisão podem causar danos irreversíveis, segundo especialistas.

“Desde sempre, o Mercosul não passa de uma união aduaneira imperfeita, criada com objetivo geopolítico, não comercial”, afirma José Niemeyer, coordenador do curso de Relações Internacionais do Ibmec, no Rio de Janeiro. “Uma eventual saída da Argentina é tudo o que o Brasil quer, já que o Mercosul tem sido uma pedra que acorrenta grande parte da indústria brasileira. A tendência é que os países olhem mais para dentro do que para fora.”

O impasse sobre a permanência da Argentina nas negociações sobre os acordos entre o Mercosul e países que não fazem parte do bloco já engessa o avanço de várias conversas. Ao mesmo tempo, a generalizada recessão causada pela pandemia da Covid-19 deixa qualquer tentativa de acordo regional em suspenso. Na sexta-feira 1, os argentinos chegaram a anunciar que aceitariam dialogar sobre os tratados de livre comércio com terceiros mercados, mas condicionaram sua participação a um tratamento diferenciado às indústrias do país – proposta imediatamente rejeitada, por unanimidade, pelos outros membros. “Os entraves entre Argentina e Brasil têm mais caráter político, com governos que se apresentam com ideologias opostas”, diz o economista Gustavo de Moraes, coordenador de ciências econômicas da PUCRS, em referência ao socialista Alberto Fernández e ao auto-denominado liberal Jair Bolsonaro. “Soma-se a isso o coronavírus, que traz uma perspectiva mais protecionista em todo o mundo.”

DIPLOMACIA No campo diplomático, o embate tem sido minimizado. “A Argentina explicou que, por razões econômicas, não poderia sentar à mesa das tratativas comerciais neste momento”, disse Paula Barboza, coordenadora geral de negociações comerciais extrarregionais do Itamaraty. “Os argentinos foram respeitosos e não quiseram causar constrangimentos aos demais membros do Mercosul.” O maior entrave na visão argentina, no entanto, é um possível acordo com a Coreia do Sul, visto como a principal ameaça aos empregos industriais no país. “Em relação a um eventual acordo com a Coreia do Sul, diversas entidades que representam os setores produtivos manifestaram formalmente as suas objeções sobre o impacto no tecido industrial, sobretudo no contexto da crise global gerada pela Covid-19”, apontou a chancelaria argentina, em nota.

Nos próximos dias, novos debates – por videoconferência – entre os membros do Mercosul deverão ocorrer para definir o destino do tratado comercial. A pauta principal é se o bloco seguirá com ou sem a Argentina. Caso ela saia, os TLCs poderão ser retomados. Há grande torcida pelo fim do Mercosul, tanto dentro do governo brasileiro quanto no país vizinho. Os argentinos alegam que sua economia já está em frangalhos e que expor as empresas locais à concorrência mais acirrada pode gerar uma onda de falências. Além disso, o presidente Alberto Fernández está impondo um isolamento social mais rígido do que em outros países da região, o que tem fragilizado a atividade econômica.

PROTECIONISMO: O presidente argentino, Alberto Fernández, acredita que novos acordos de livre comércio do Mercosul podem prejudicar ainda mais a já fragilizada indústria do país. (Crédito:Divulgação)

No lado brasileiro, o rompimento com a Argentina deixa o País mais à vontade para negociar com México, Japão, Vietnã e Estados Unidos, além das conversas que já estão em curso. “Com a falta de sintonia entre Brasil e Argentina, qualquer negociação do Mercosul com países de fora é apenas letra morta”, afirma Moraes, da PUC-RS. Para ele, o único setor da economia que deve passar incólume pela crise do Mercosul é a agricultura, dado o crescimento da demanda por alimentos na Ásia. “O agronegócio vai ficar de fora de tudo isso com a expansão dos embarques de grãos e carnes para países como Índia e China.”

00