Até pouco tempo, nada parecia ser capaz de frear o ímpeto e os planos ambiciosos do japonês Masayoshi Son, CEO do Softbank, grupo da terra do sol nascente dono de empresas de telecomunicações e de internet em seu mercado doméstico e nos Estados Unidos. Depois de seus primeiros aportes, ainda nos primórdios da web, em companhias como Yahoo e Alibaba, ele vinha cumprindo uma jornada que o consolidou como um dos principais investidores no mundo das startups de tecnologia. Além de nomes como a chinesa Didi Chuxing e da americana WeWork, a lista de companhias que receberam aportes do empresário e de seu conglomerado inclui a Uber, que recebeu uma injeção de recursos de US$ 9,3 bilhões em março deste ano e da qual o Softbank é o maior acionista, com 15% de participação.

Boa parte do combustível para essa escalada veio de seus fortes laços com o governo saudita, personificado na figura do príncipe Mohammed bin Salman. Criado em 2016, o Vision Fund, do Softbank, é o melhor retrato dessa relação. Com US$ 100 bilhões captados, dos quais, US$ 45 bilhões junto aos sauditas, esse é o maior veículo mundial de investimentos do setor de tecnologia. Para efeito de comparação, o montante equivale a quatro vezes o Silver Lake ou quinze vezes o Sequoia Capital, dois dos principais fundos do Vale do Silício.

Tragédia diplomática: o jornalista Jamal Khashoggi desapareceu após visitar o consulado da arábia saudita em Istambul, na Turquia

Nessa semana, no entanto, a estratégia de Son e companhia foi colocada em xeque. Isso porque, desde o dia 2 de outubro, o jornalista saudita Jamal Khashoggi está desaparecido. O caso ganhou repercussão nos últimos dias com as acusações do governo turco de que o correspondente do jornal americano The Washington Post teria sido assassinado, com o conhecimento do príncipe bin Salman, no consulado da Arábia Saudita, em Istambul, último local em que o profissional, forte opositor do regime saudita, foi visto. Uma reportagem publicada na quarta-feira 17 pelo jornal americano The New York Times acrescentou detalhes ainda mais dramáticos ao caso, a partir da narração do suposto episódio por um oficial turco que teve acesso a um áudio do crime.

Até o momento, o governo saudita alega em sua defesa que o jornalista saiu ileso do local. Isso não foi o suficiente para impedir os abalos sísmicos que o caso trouxe à geopolítica internacional. Dentro do Congresso americano, é forte a pressão para que se tome medidas mais drásticas em relação ao incidente. Ao mesmo tempo, o presidente dos EUA, Donald Trump, sabe da importância do país como parceiro comercial. E, por isso, tem alternado ameaças de “severa punição”, com a defesa de que se conceda o benefício da dúvida à Arábia Saudita.

À parte das eventuais implicações diplomáticas, toda essa confusão já trouxe consequências bilionárias ao Softbank, que ainda não se posicionou oficialmente sobre o tema. Na segunda-feira 15, quando o caso ganhou grande repercussão, as ações do grupo fecharam o pregão na Bolsa de Tóquio com queda de 7,27%, o que se traduziu em uma perda de valor de mercado de US$ 5,8 bilhões, para US$ 91,2 bilhões. Até quarta-feira, os papéis alternaram altas e baixas, refletindo possíveis questionamentos quanto à proximidade da companhia com os investidores sauditas. “O fundo parece ter perdido uma visão positiva do mercado por se associar a um regime que exporta o extremismo islâmico, a matança dos seus críticos e que enfraquece os direitos humanos”, afirma Jeff Kingston, professor da Temple University, em Tóquio. E as perspectivas de novos desdobramentos do incidente podem fazer o Softbank pagar ainda mais caro por essa relação tão estreita.

Parceria em risco: Donald Trump (à dir.) está sendo pressionado para tomar medidas mais drásticas contra o regime do príncipe saudita Mohammed Bin Salman

Mais do que os bilhões perdidos até aqui no mercado de capitais, os eventos recentes colocam um ponto de interrogação para o Softbank em várias frentes. A primeira delas é na possível saída de atuais parceiros da companhia que não queiram ter suas imagens associadas a questões tão polêmicas. Além do dinheiro saudita, o Vision Fund, por exemplo, tem a participação de empresas gigantes de tecnologia, como as americanas Apple e Qualcomm. O mesmo pensamento pode dificultar o processo de incorporação de novas startups ao portfólio do grupo.

“O Softbank está na corda bamba. Há o risco de que suas fontes de recursos sequem sob o risco de danos à reputação dos investidores”, diz Kingston. Ele ressalta que, da mesma forma, boa parte do Vale do Silício pode não ser mais tão receptiva aos “cheques” desembolsados por japoneses e sauditas. “Os valores propagados pelos sauditas representam a antítese do que pregam muitas dessas startups, que adotam o discurso de fazer do mundo um lugar melhor para se viver.” Ray Wang, analista principal e fundador da consultoria americana Constellation Research, acrescenta: “Há uma tendência crescente de ativistas sociais pressionando os conselhos de administração dessas startups.”

Esse contexto também traz um revés em estratégias divulgadas recentemente por Son para mais do que duplicar a força do conglomerado japonês no mercado de tecnologia. Em entrevista concedida em setembro à agência de notícias americana Bloomberg, o empresário afirmou sua intenção de captar, em breve, o “Vision Fund II”. O novo fundo levantaria outros US$ 100 bilhões, dos quais, US$ 45 bilhões, a princípio, seriam injetados pelo príncipe bin Salman. O CEO do Softbank ressaltou ainda a ideia de captar fundos nesses moldes a cada dois ou três anos. Os últimos acontecimentos, porém, parecem ter colocado esses planos, ao menos por enquanto, em compasso de espera. Marcelo Claure, diretor de operações da empresa, disse em um evento de tecnologia realizado na terça-feira 16, em San Jose, na Califórnia, que não há certeza de que o novo fundo será lançado. “Assim como boa parte do mundo, nós estamos olhando para o desenrolar dos acontecimentos. Com base nisso, tomaremos decisões no futuro”, afirmou Claure.

Dara Khosrowshahi, da Uber: “Estou muito preocupado com os relatos sobre Jamal Khashoggi”

Sob esse cenário, outro fator que vem à tona é o dilema de Masayoshi Son. “Ele está em uma posição similar a de Donald Trump, pois está comprometido com os sauditas e será muito difícil recusar esse apoio”, afirma Dan Baker, analista da corretora americana Morningstar. “O desafio será como fazer isso sem despertar os questionamentos de outros parceiros e dos clientes das principais startups do seu portfólio.” Ao mesmo tempo, o CEO japonês não tem como controlar as manifestações dessas empresas. A Uber é um exemplo. O CEO do aplicativo de transportes, Dara Khosrowshahi, cancelou sua participação no evento Davos in the Desert, principal evento de propaganda dos investimentos do príncipe bin Salman, que será realizado entre os dias 23 e 25 de outubro, em Ryad, capital da Arábia Saudita.

“Estou muito preocupado com os relatos sobre Jamal Khashoggi. Estamos acompanhando a situação de perto e, ao menos que haja uma mudança substancial nos fatos, eu não irei participar da conferência”, afirmou o executivo em comunicado. Por outro lado, algumas empresas preferem se manter neutras ao assunto. A brasileira Loggi, por exemplo, é uma delas. A companhia do aplicativo de entregas anunciou, na terça-feira 16, um aporte de US$ 100 milhões do Softbank. Procurada, a startup afirmou que não vai se posicionar sobre o assunto. De certa forma, o Vale do Silício também está entre a cruz e a espada. Segundo a empresa americana de pesquisas PitchBook, o príncipe saudita bin Salman tem, desde 2016, mais de US$ 11 bilhões investidos em empresas da região, parte via Softbank, parte por meio do fundo soberano da Arábia Saudita (PIF). O montante em questão supera qualquer outro rival no mercado de venture capital.