Quem frequenta praia sabe, há uma linha tênue no mar que divide a diversão e o desespero. Um passo a mais e o risco é se afogar. Em geral, cabe a todos – do salva-vidas aos próprios banhistas – saber onde está esse limiar. A mesma lógica vale para as contas públicas. Um gasto a mais ou uma despesa inesperada pode ser a diferença entre uma máquina pública sadia e o descontrole fiscal. Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial aprovada, a União assume o papel de socorrista e deixa claro até onde os governadores podem ir sem se afogar – e 14 deles já poderiam pedir resgate.

De acordo com números do Tesouro Nacional, 13 estados mais o Distrito Federal já comprometem ao menos 95% das despesas obrigatórias primárias (sem contar os juros da dívida) do total das receitas correntes. O porcentual atinge a linha estipulada pelo governo, e endossada pelo Congresso, para que governadores acionem os gatilhos e controlem gastos com contratações, alta de salários e despesas administrativas. Os números do Tesouro, referentes a 2019, mostram a situação crítica antes da pandemia. Em 2020, em função dos repasses da União para o combate à Covid-19, os orçamentos ficaram inflados, como diz o secretário do Tesouro, Bruno Funchal. “O dado de 2019 é mais fidedigno com a realidade.” No Tesouro, os 95% definem quais estados podem ou não receber empréstimos. “Fazemos isso para identificar maus pagadores, mas com a PEC a União terá mais garantias para definir empréstimos.”

Evandro Rodrigues

No caso da União, a estimativa do secretário, e compactuada pelo ministro Paulo Guedes, é que o gatilho poderia ser acionado em 2024. Segundo o ministro, a aprovação do texto é uma forma de prever problemas futuros. Sobre a possibilidade de os estados não acionarem o gatilho, mesmo com problemas fiscais, Guedes reafirmou que estamos em uma república federativa. “Os estados têm autonomia e devem ser cobrados por isso.”Segundo o Boletim dos Entes Subnacionais, realizado anualmente pelo Tesouro, os governos que já poderiam acionar o gatilho são de Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins. Há ainda casos em que o comprometimento com despesas fixas ultrapassa 100% da receita, é o caso de Minas Gerais (105,2%). O acionamento do gatilho, que fica por conta do governador, também pode ser feito quando a despesa corrente ultrapassar 85% da receita corrente, mas precisa de anuência do Legislativo Local.

NA PRÁTICA O diretor executivo do Instituto Fiscal Independente (IFI) do Senado, o economista Felipe Salto entende que a desidratação que a PEC 109 sofreu no Senado deixou pontos cegos. Um deles é o fato de o gatilho ser facultativo. Isso faz com que possa ser manobrado para fins eleitoreiros. Há ainda uma preocupação sobre o indicador que será utilizado no cálculo da relação entre despesa e receita. “A PEC não explicita se o indicador ‘despesa corrente sobre receita corrente’ considerará a despesa empenhada, liquidada ou paga.”

A distorção é nítida em Minas Gerais, de Romeu Zema, que é administrador e do Novo. Quando o cálculo se dá pela despesa empenhada (como faz o Tesouro), o valor é 105%. Se o cálculo for por despesa liquidada, fica em 95%, mas se a conta considerar a despesa efetivamente paga, aí a relação fica próximo de 80%, abaixo do gatilho. É como se o limite entre se afogar ou não, não dependesse da profundidade do mar, mas dos olhos do salva-vidas.

AO VENCEDOR, AS BATATAS

Na divisão do Orçamento da União apresentada pelo senador Márcio Bittar na segunda-feira (23) ficou claro quais são os verdadeiros interesses do governo federal. Saúde, educação, ciência e assistência social, juntas, não receberam nem metade do aumento de R$ 8,3 bilhões destinados aos militares brasileiros. O resultado explicita quem foi o vencedor nessa disputa pelo dinheiro, já que um quinto de tudo que será investido no Brasil caberá aos militares decidir seu destino e uso.

E planos não faltam: novas aeronaves, investidas espaciais, cargueiros importados e capitalização de estatais militares. Tudo isso se soma a uma reforma de Previdência para lá de branda que a categoria recebeu, e o aval para ter reajuste salarial enquanto o restante do funcionalismo público, em meio à pandemia, está proibido. No auge da segunda onda da Covid-19, a saúde receberá R$ 1,2 bilhão a mais que em 2020, valor irrisório frente aos desafios. Mas não importa apontar as contradições do Orçamento 2021. Segundo Machado de Assis, aos vencidos, só cabe ódio ou compaixão.