Quando escreveu o livro 2001 ? Uma Odisséia no Espaço na década de 50, o escritor Arthur Clarke nem fazia idéia que sua obra anteciparia o que mais tarde seriam as novas fronteiras do homem no espaço. O autor, é claro, também não imaginaria que tantos anos depois o título quase apocalíptico poderia ser tão bem empregado para definir o quadro que está se aproximando na aviação brasileira. O ano promete ser de muita disputa entre governo e companhias aéreas nacionais para saber quem vai ceder e quais imposições vão prevalecer no projeto de lei que cria a Anac ? Agência Nacional de Aviação Civil. É essa entidade que desenhará a cara do setor no futuro e indicará os caminhos pelos quais as empresas terão de trafegar daqui para frente. Não bastassem as novas regras, as companhias enfrentarão uma concorrência cada vez mais acirrada. Uma guerra de preços, típica desse cenário, seria o desastre total, já que os balanços continuam tingidos de vermelho. Juntas, três das mais importantes empresas do setor (Varig, Transbrasil e TAM) acumulam dívidas de quase R$ 3 bilhões.

O texto de criação da Anac passou dois anos sobrevoando os ministérios da Defesa, da Fazenda, do Planejamento e da Casa Civil. Na última semana de novembro chegou à Câmara dos Deputados. Só começará a ser discutido pelos congressistas a partir de fevereiro. Em Brasília, comenta-se, com certa ironia, que nunca se viu dois presidentes de concorrentes tão unidos como nos últimos tempos. Ozires Silva, da Varig, e Rolim Amaro, da TAM, trocam figurinhas quase diariamente sobre o projeto e as estratégias de abordagem dos deputados. ?Vamos fazer um esforço conjunto para que o setor se consolide?, diz Silva. Além da pressão pessoal de Silva e Amaro, o setor tomou outra providência. Está transferindo para Brasília a sede do Sindicato Nacional das Empresas Aéreas (SNEA), até agora localizada no Rio de Janeiro. Tudo para acompanhar bem de perto e, se possível, interferir no texto final que criará a Anac.

Embora ainda não tenham idéia clara do cenário, os executivos tentam fazer planos para 2001. Na Varig, a idéia, explica Ozires Silva, é agregar valor a tudo o que a empresa já faz e (quem sabe?) entrar em novas frentes. Há pressa de fazer caixa e assim reduzir o endividamento e o prejuízo que a companhia vem registrando nos últimos balanços. Uma alternativa seria a operação de aeroportos, consorciada com empresas nacionais ou estrangeiras. Tudo vai depender da decisão do governo de privatizar os serviços que hoje são feitos pela Infraero. ?É um setor que dá dinheiro?, justifica Silva. No ano passado, a receita da Infraero foi de mais de US$ 600 milhões. Além disso, Silva pretende encontrar um sócio para a Varig Logística (empresa de transporte de carga) e vender serviços de manutenção de aeronaves e de treinamento de pessoal para concorrentes. Assim, se caracterizaria como uma prestadora de serviço no mercado de aviação.

Já na TAM, conta Rolim, os planos são de consolidar o mercado nacional e investir nas novas linhas internacionais que recentemente foram concedidas pelo DAC. Rotas para a Alemanha, Espanha, Argentina e Estados Unidos estavam até pouco tempo nas mãos de Wagner Canhedo, da Vasp. Em função de problemas de caixa, ele foi obrigado a devolver as aeronaves MD11 utilizadas nas linhas para o Exterior.

A Vasp, aliás, é a grande incógnita do setor. Ninguém ousa apostar sobre o futuro da empresa. Há anos, fala-se que Canhedo vai se livrar da tempestade vendendo sua participação acionária. Mas até agora, nada. Outra grande incógnita é a Transbrasil. A associação com a TAM, esboçada em meados deste ano, não decolou. A dívida líquida da companhia cresceu para R$ 480 milhões durante o ano e a obrigou a se desfazer de seus cinco aviões próprios. Semanas atrás, a morte do fundador Omar Fontana colocou mais um ponto de interrogação no destino da companhia.

Os problemas enfrentados pela Transbrasil e pela Vasp abrem uma oportunidade de crescimento para as empresas regionais ? um pedaço do setor que continua atraindo novos investidores. Em 2001, dois empreendimentos devem decolar: a Gol, do empresário Nenê Constantino, e uma outra companhia, ainda em fase de formação, pertencente a Aramis Maia, sobrinho do pecuarista Tião Maia.

Ambos pretendem começar a operação de forma cautelosa, até mesmo em função do surgimento da Anac. ?Difícil tocar um negócio sabendo que as regras do jogo serão modificadas?, diz ele. ?Por isso gostaria que o governo tivesse nos chamado para conversar.? Uma das queixas de Silva sobre o texto final do projeto é a proposta de que os contratos de concessão de linhas tenham validade de dez anos, renováveis. Segundo ele, o período é muito curto para um mercado como o da aviação civil, cujos contratos de leasing e o tempo de utilização de aeronaves são de longo prazo. Além disso, reclama da possibilidade de companhias grandes e pequenas disputarem os mesmos mercados. O idealizador do texto principal do projeto de criação da Anac, José Augusto Varanda, titular da Secretaria de Organização Institucional, descorda do presidente da Varig. ?Não seria justo que as grandes, já estabelecidas, ficassem com as melhores linhas e as novatas tivessem de começar do zero com aquelas linhas que não são exploradas?, afirma. ?Se vamos liberar as tarifas, é preciso que haja também a livre concorrência.? Ao todo, 34 empresas têm autorização do DAC para voar. Outra novidade que o projeto apresenta é que não haverá mais apenas a concessão de trechos, mas um processo de licitação. Assim, estariam automaticamente desclassificadas da concorrência aquelas empresas com dívidas tributárias federais, como INSS ? situação na qual se encaixam a Vasp e a Transbrasil.

Seja como for, as companhias aéreas sabem que terão de mudar muita coisa depois da criação da Anac. Como a agência ainda não passa de um monte de propostas, ninguém consegue fazer uma prognóstico do que vai acontecer. Difícil afirmar, por exemplo, se os novos competidores realmente vão ter chance de sobreviver num mercado ainda tão pequeno como o do Brasil, que transporta apenas 35 milhões de passageiros ao ano. Ou ainda se dessa vez as grandes empresas vão conseguir voar com as próprias asas e dispensar um outro tipo de gasolina azul que o governo costuma liberar, o dinheiro público.