Aos poucos, e de forma dolorosa para o País, as peças vão achando seu lugar no quebra-cabeças. A crise que teve início no final de junho, com as denúncias de corrupção formuladas pelo deputado Roberto Jefferson e ratificadas pelo testemunho da secretária Karina Somaggio, segue, em ritmo avassalador, produzindo novas evidências contra o governo e seu partido. Na semana passada, a coleta de evidências subiu outro degrau de gravidade. Deixou o terreno das palavras, onde já provocara queda de ministros e demissão de líderes partidários, para o terreno irrefutável das provas documentais, onde promete provocar estragos maiores. Embora dominada pelo teatro dos depoimentos, durante os quais foram ouvidos os petistas Delúbio Soares e Silvio Pereira, respectivamente ex-tesoureiro e ex- secretário-geral do Partido dos Trabalhadores, a CPI dos Correios enveredou, na semana passada, por um terreno muito mais profícuo ? a leitura dos documentos resultantes da quebra do sigilo bancário das empresas do publicitário Marcos Valério. Das caixas de papelão e das fotocópias ali armazenadas está emergindo um cenário de corrupção africano, no qual funcionários de partidos recebem presentes de empresas e esposas de parlamentares disputam com policiais transformados em laranjas um lugar na fila do banco para sacar dinheiro ilícito. Essa caixa de Pandora criminosa está engolindo pedaços crescentes do Partido dos Trabalhadores e seus aliados, mas ameaça avançar, como uma névoa pestilenta, sobre outras paragens da vida brasileira.

Em seu avanço, ressalte-se de novo, a crise tem confirmado, de forma detalhista e quase perversa, o roteiro traçado nas acusações de Jefferson e da secretária Karina. O que já estava lá, mas emergiu esta semana com força irrefreável, é a sensação de que muita gente próxima ao governo está metida em crimes graves. ?Está evidenciada a formação de quadrilha?, disse à DINHEIRO o juiz federal aposentado Pedro Paulo Castelo Branco Coelho, que atuou nas apurações das denúncias contra o ex-presidente Fernando Collor de Melo. A deputada Denise Frossard, do PSB, juíza aposentada e integrante da CPI, também está espantada. ?Esse povo já tem meio Código Penal na cabeça. É uma salada de crimes?, diz ela. Pelo que DINHEIRO apurou junto a juízes e advogados, Marcos Valério, o suposto operador do cada vez mais palpável mensalão, já incorreu em pelo menos quatro crimes previstos no Código Penal. O segundo mais implicado é o ex-tesoureiro Delúbio, que contou para a CPI uma história de Caixa 2 eleitoral que pareceu cobertura para esconder coisa possivelmente mais grave: formação de quadrilha, corrupção ativa e lavagem de dinheiro. O crime eleitoral que ele assumiu – e que mesmo o presidente Lula, em aparente deslize, admitiu durante uma entrevista – é de longe o mais leve dos seus problemas. ?Crime eleitoral não dá e nunca deu cadeia no Brasil?, afirma o criminalista e juiz aposentado Luiz Flávio Gomes, de São Paulo. Para o advogado Marcelo Gatti, especialista em Direito Público, a questão agora é saber se tudo se resume apenas a crime eleitoral. ?Parece que não?, diz ele.

Enquanto alguns congressistas bancam acareadores e outros se exaltam na sala de depoimentos da CPI, é a menos de 80 metros dali que pulsa o novo coração das investigações. Na sala 13, no subsolo da ala Alexandre Costa, estão empilhadas mais de 30 caixas com documentos dos bancos Rural, de Minas Gerais, do Brasil e Central, além de análises fiscais da Receita Federal. Ali se conta, em detalhes por vezes sórdidos, a vida financeira do empresário Marcos Valério, de sua mulher Renilda e das empresas dos dois. É, sem dúvida, o espaço mais disputado atualmente no Congresso. Em frente à porta de madeira leve, amontoam-se diariamente dezenas de pessoas ansiosas por saber o que escondem os papéis. Ali, num espaço de 20 metros quadrados, deputados e senadores entram sorrindo e saem abatidos. ?O que estamos lendo é assustador”, relata o deputado pefelista ACM Neto. ?Tudo o que suspeitávamos está se confirmando?. Nem os representantes do governo têm energia para discordar. ?As informações são graves”, reconhece o petista José Eduardo Cardozo. “É muito dinheiro. Saques de valores muito elevados”. Na noite de quinta-feira, o senador petista Delcídio Amaral, presidente da CPI do Correios, admitiu que os pagamentos feitos por Valério a parlamentares sugeriam algo que o governo Lula vinha tentando negar desde o início da crise. ?Pela distribuição dos valores ao longo do tempo, a impressão que se tem é de que não se trata de gastos de campanhas, mas sim da existência de um mensalão?, afirmou. Nesta terça-feira 26 depõe na CPI a mulher de Marcos Valério, Renilda Santiago. Simone Vasconcelos, diretora financeira da SMP&B que, segundo a secretária Karina, ?ficava cansada de contar e distribuir dinheiro?, vai enfrentar seu turno de inquisição no dia 2 de agosto. Não se esperam revelações substancias desses interrogatórios-espetáculo, mas a presença dos depoentes na TV por horas a fio, em transmissão ao vivo para todo País, manterá elevada a temperatura da crise.

Enquanto isso, fatos se aglomeram à porta da CPI. Na sexta-feira 22, o jornal O Globo circulou com transcrições de conversas telefônicas nas quais integrantes da chamada Máfia da Previdência ? braço dos empreendimentos criminosos do argentino César Arrieta no Brasil ? discutiam o que parecem ser doações em dinheiro para o tesoureiro do PT e seu interlocutor no PTB, o deputado Jefferson. Esta pode ser a evidência de conexão entre o Caixa 2 dos partidos e o crime organizado. Outro avanço na direção errada, desta vez em direção ao manancial dos fundos de pensão, foi registrado também na sexta 22 pelo Correio Braziliense. O jornal revelou uma operação de compra de papéis realizada em julho de 2004 na qual o fundo de aposentadoria dos portuários, o Portus, sofreu um prejuízo de R$ 6,5 milhões, comprando títulos em posse do banco Cruzeiro do Sul, da família carioca Índio da Costa. A instituição foi das primeiras a atuar com crédito consignado e acaba de receber do Banco Central autorização para atuar como dealer no mercado de títulos da dívida pública. Os R$ 6,5 milhões vaporizados na operação, segundo denúncia de sindicalistas ao Correio, teriam sido apropriado para campanhas do PT, responsável pela indicação dos dirigentes do Portus.

Divulgadas no último dia útil da semana, essas suspeitas encerraram uma série bombástica de revelações. A mais ruidosa delas foi a confirmação de que em novembro de 2004 o secretário-geral do PT, Silvio Pereira, recebeu de presente um jipe LandRover de R$ 73 mil de um executivo da GDK Engenharia, fornecedora da Petrobras. Em julho de 2004 a empresa assinara com a estatal um contrato de R$ 88 milhões. No mês seguinte, agosto, doou R$ 400 mil para a campanha eleitoral de Emídio Pereira de Souza, candidato petista à prefeitura de Osasco ? cidade natal e Pereira e do deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara. Na sexta-feira 22, Pereira assinou uma carta admitindo seu erro e se desligando do PT. ?Ele causou grande dano ao partido?, reagiu Tarso Genro, presidente da agremiação.

Outra bomba da semana foi a divulgação da lista de pessoas que compareceu ao Banco Rural para recolher dinheiro depositado pela empresa SMP&B, de Valério. Entre elas estava esposa do ex-presidente da Câmara, João Paulo, (que pegou R$ 50 mil), e uma tal de Anita Leocádia Pereira (R$ 470 mil), chefe de gabinete do petista Paulo Rocha. Ele era líder do PT na Câmara e renunciou depois da denúncia. A lista de saques do Rural é a parte registrada e mais convencional da distribuição de benesses patrocinada por Valério e Delúbio. Depondo na Polícia Federal, Simone, a diretora da SMP&B que contava muito dinheiro, revelou que em várias ocasiões deu grandes quantidades de dinheiro vivo a pessoas que nem sabia quem eram. Elas a encontravam dentro da agência do banco, se identificavam de alguma forma e recolhiam envelopes cheios de notas, que sequer abriam para conferir. Esse tipo de esquema primitivo, se bem investigado, pode revelar estruturas de corrupção mais elaboradas. O Ministério Público Federal do Ceará está investigando, neste momento, uma possível conexão entre José Adalberto Meira da Silva ? o tragicômico petista dos dólares na cueca ? com a Alusa, empresa que participa do consórcio para construção do Sistema de Transmissão do Nordeste, uma obra de engenharia elétrica no valor de R$ 510 milhões. Somadas, essas suspeitas, indícios e provas contribuem para iluminar um tumor de relações clandestinas ao redor do governo e seu partido. Ele parece ter larga extensão e enorme profundidade. À medida em que avançam as investigações, vai ficando mais e mais implausível a tese de que tudo se resume a crime eleitoral – resultado do deslize de um tesoureiro leviano aliado a um empresário sem cabelos ou escrúpulos. Hoje, tudo parece maior, mais grave, mais organizado e mais próximo do centro do poder do que parecia quando Jefferson e Karina começaram a falar. O ex-ministro José Dirceu saiu de lá, como Jefferson havia sugerido, mas pessoas próximas a ele continuam cada vez mais implicadas em atividades esquisitas. A cada dia está mais difícil acreditar que ele e outros acima dele não soubessem o que se passava.

Com reportagem de Elaine Cotta, Gustavo Gantois e Adriana Nicacio

 
Crime e castigo
O que a Justiça prevê de punição caso as denúncias venham a ser comprovadas

Crime eleitoral
No delito estão incluídos todos que confessaram a existência de Caixa 2 no PT. Nem o presidente Lula escaparia se provado que ele sabia e não denunciou (teria cometido crime de prevaricação). A confissão coletiva é vista como estratégia para escapar de condenação mais grave. Além de cassação de mandato, a pena pode chegar a cinco anos de prisão. Mas no Brasil, até hoje, ninguém foi preso por crime eleitoral.

Lavagem de dinheiro
Há fortes indícios de que Valério tenha ocultado os valores movimentados por suas empresas. O crime se configuraria se conjugado ao de fraude em licitações públicas, que poderiam explicar a origem do dinheiro. Neste caso, pode-se aplicar detenção de dois a quatro anos, mais multa.

 

Formação de quadrilha
As declarações de Delúbio Soares e Marcos Valério confirmando que atuavam em conjunto configuram o crime, principalmente se for comprovado que outras pessoas sabiam do esquema. O Código Penal, neste caso, prevê pena de um a três anos de reclusão.

 

Corrupção passiva
Os mais de 30 parlamentares que sacaram dinheiro nos bancos Rural e BMG podem ser acusados deste crime. A pena vai de um a oito anos de prisão, mais multa a ser determinada pela Justiça.

 

Crime contra a ordem tributária
Valério pode tê-lo cometido ao sonegar informações
sobre suas movimentações financeiras. Também
Silvio Pereira teria omitido detalhes sobre a aquisição
de um carro. Essa pena varia de dois a cinco anos de prisão, mais multa.

Tráfico de influência
Silvio Pereira terá incorrido neste crime se
ficar comprovado que ele ganhou um Land
Rover de presente da empresa GDK para
beneficiá-la em licitação da Petrobras. A pena
varia de dois a cinco anos, mais multa.