Em comércio exterior, o conceito de Cadeias Globais de Valores explica como a produção de bens está cada vez mais dispersa pelo mundo. Um exemplo hipotético seria o de um carro fabricado no México que recebe as rodas da Espanha e os vidros do Brasil. A ideia pressupõe um pacto entre países de que as trocas são um mecanismo de desenvolvimento dinâmico, com perdas e ganhos, mas com benefícios mútuos superiores aos envolvidos. A percepção predominante em defesa de uma cadeia global interligada foi um dos fatores centrais por trás do avanço de 30% nas trocas mundiais nos últimos dez anos, para US$ 15,4 trilhões em 2016. Essa cifra revela o potencial de danos diante da ameaça de criação de obstáculos aos fluxos de mercadorias e de escaladas protecionistas, como a deflagrada na quinta-feira 8 pelos Estados Unidos. A sobretaxa de importação de 25% ao aço e de 10% sobre o alumínio torna real a hipótese de uma guerra comercial e impõe perdas bilionárias a parceiros como o Brasil.

O sinal de que as medidas do presidente Donald Trump subvertem a tradição legal e as evidências econômicas históricas é o tamanho da resistência sofrida. Um manifesto de mais de 100 parlamentares de seu Partido Republicano se somou às queixas de empresas americanas, aliados comerciais e membros de sua equipe, entre os quais o conselheiro de segurança, H.R McMaster, e o principal assessor econômico de Trump, Gary Cohn, que pediu demissão. Não se trata da primeira barreira desse tipo. O motivo da oposição mais ampla desta vez é o uso do inédito argumento de ameaça à segurança nacional e os impactos esperados no país. Embora esteja prevista nas regras de comércio internacional, a tese é difícil de ser comprovada objetivamente e abre um precedente para que outros países façam o mesmo.

Soldados na guerra: à esquerda, manifestantes demonstram apoio à proteção ao setor de aço nos Estados Unidos. à direita, sindicalistas protestam contra a medida em frente ao consulado americano, em São Paulo (Crédito:Divulgação e AFP Photo / Miguel Schincariol)

Quando uma potência como os Estados Unidos rompe com a lógica de estabilidade das regras de comércio que defendeu historicamente, abre-se espaço para o incerto. O cenário mais provável é de perdas generalizadas. Autoridades e representantes do setor brasileiro passaram as últimas semanas tentando mostrar as consequências negativas aos americanos. Um dos argumentos é o de que 80% dos US$ 2,6 bilhões vendidos pelas siderúrgicas brasileiras são de produtos semiacabados, que são tratados nas usinas locais. Placas produzidas nas fábricas nacionais são rebobinadas pelos americanos e se transformam em componentes para a indústria automobilística, por exemplo. O efeito esperado é um aumento de preços, algo que vem sendo comparado a um novo tributo. Se, de um lado, o cumprimento da meta, com a sobretaxa, de elevar a utilização da capacidade para 80% nas usinas americanas – atualmente esse nível é de 48% no alumínio e 73% no aço – pode gerar cerca de 30 mil empregos em ambos os setores protegidos, por outro, quase 200 mil vagas podem ser perdidas mais adiante na cadeia, como nas montadoras.

Além disso, as produtoras de aço brasileiras são uma das maiores compradoras do carvão americano – as importações chegaram a US$ 1 bilhão em 2017 e seriam afetadas com a medida. O País também amarga neste ano um déficit na balança comercial total com os americanos, de US$ 444 milhões. A relação bilateral no setor não se resume apenas às trocas. Companhias como Gerdau, CSN e Vale já investiram cerca de US$ 11 bilhões no país de Trump. Diante da confirmação da sobretaxa, as ações das siderúrgicas brasileiras caíram até 5% na Bolsa. Só em um dia, a perda em valor de mercado foi de R$ 1,8 bilhão. “Existe complementaridade na cadeia do aço dos Estados Unidos e do Brasil”, afirma Alexandre Lyra, presidente do Conselho Diretor do Instituto Aço Brasil. “Tem toda essa cadeia estreita de comércio.” Em volumes, o Brasil é o maior exportador de aço aos Estados Unidos, atrás do Canadá. São quase 5 milhões de toneladas, ou um terço das vendas externas. Como o presidente Trump excluiu os canadenses e os mexicanos da medida, o País foi o maior afetado.

Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC: “O olho por olho nos deixará todos cegos e o mundo em profunda recessão” (Crédito:Antonio Cruz/ Agência Brasil)

O estrago vai muito além da perda de volume nas vendas diretas. Entre as consequências indiretas, estão a adoção de barreiras semelhantes em outros países, fechando mais portas às exportações, e o risco de uma enxurrada de importações no Brasil. O temor também é compartilhado pelo setor de alumínio brasileiro, que hoje já apresenta déficit na balança comercial. “Os Estados Unidos são o maior importador de alumínio, é óbvio que qualquer ação sobre as importações afetará o mercado mundial”, afirma Milton Rego, presidente da Associação Brasileira do Alumínio (Abal). “Não podemos ser ingênuos de achar que não haverá desvio de mercado.” As exportações brasileiras de alumínio representam menos de 1% do total das compras americanas do produto.

A primeira medida a ser adotada pelo Brasil será um recurso para avaliar a sua exclusão. O aumento entra em vigor em 15 dias. No anúncio, Trump deixou aberta a possibilidade de rever a questão caso a caso. Se mantida, o caminho seria um processo na Organização Mundial de Comércio (OMC), que pode se estender por anos. Em nota, o governo brasileiro diz ter recebido o anúncio com “grande preocupação”, prevê “graves prejuízos” às exportações e reforça a intenção de recorrer a todas medidas necessárias para preservar seus interesses. De imediato, o setor de aço nacional cobra uma elevação proporcional da tarifa às importações, para impedir a invasão do excedente externo no País. A alíquota média hoje está entre 12% e 14%.

Movimentações desse tipo se estendem por todo o mundo. A União Europeia, segundo maior destino das vendas siderúrgicas brasileiras, anunciou sobretaxa semelhante. O bloco também propôs uma retaliação a produtos americanos considerados símbolos de Estados comandados por republicanos. Entre eles, motos Harley-Davidson e uísque Jack Daniels. Trump nunca escondeu a intenção de adotar medidas contra as práticas chinesas de comércio. No setor de aço, o país asiático é apontado como principal responsável pelo excesso de capacidade que prejudicou as siderúrgicas nos últimos anos. Hoje, são 750 milhões de excedente, ou cerca de um ano de produção da China.

Esta é a verdadeira razão por trás da decisão americana, mas a medida adotada agora não resolve o problema. Desde 2016, os principais produtores pressionam os chineses para reduzir as distorções e estímulos que causaram os danos. “Agora vai ter o mundo inteiro contra os Estados Unidos, foi um passo para trás”, afirma Lyra, do Aço Brasil. Uma das hipóteses é de que este seja mais um episódio da tática de Trump de criar um conflito para negociar – a ideia, por exemplo, é que as exceções de Canadá e México sejam atreladas às discussões sobre o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta).

Conectados: cerca de 80% do aço exportado aos EUA passa por um beneficiamento nas usinas americanas (Crédito:Divulgação)

GUERRA COMERCIAL Mesmo que ele decida voltar atrás no futuro, é preciso considerar o peso das suas palavras hoje. Na avaliação de especialistas, o risco de uma guerra comercial aumentou. “O perigo é uma escalada de ações protecionistas”, afirma Lucas Ferraz, professor da FGV. “Se os Estados Unidos começam a disseminar essa prática, ninguém sabe onde isso vai parar” Além da União Europeia, a China sinalizou que vai tomar medidas contra a decisão americana. “O olho por olho nos deixará todos cegos e o mundo em profunda recessão”, afirmou na segunda-feira 5 Roberto Azevêdo, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Por outro lado, a associação global das fabricantes de veículos defendeu a aceleração das negociações do acordo entre Mercosul e União Europeia, em discussão há mais de 15 anos, como forma de responder à tentativa de Trump de restringir o comércio com as novas medidas.

O ímpeto protecionista contrasta com o debate em curso no Brasil. No governo, a ideia de que há uma necessidade de ampliar a abertura comercial vem ganhando força. Um novo estudo feito pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República mostrou que o Brasil é um dos países mais fechados do mundo, com tarifas médias de manufaturados em 10%, ante média global de 3%. O levantamento sugere medidas para acelerar a abertura e aponta um potencial de redução de 5% nos preços gerais da economia, com efeitos positivos no emprego e na produtividade. O setor produtivo endossa a tese de maior integração, mas reforça a necessidade de gradualismo e alerta para o risco de exageros que afetem mecanismos legítimos existentes hoje para evitar práticas desleais de comércio. “Há uma tendência de relaxar a aplicação de medidas de defesa comercial quando o mundo está intensificando”, afirma Marcos de Marchi, presidente do Conselho Diretor da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim).

A nova visão do governo ficou clara num exemplo recente envolvendo o aço. Num processo antidumping aberto pelas siderúrgicas contra a Rússia e a China, a Câmara de Comércio Exterior (Camex), conselho de ministros que arbitra as decisões da área, reconheceu a prática desleal, mas suspendeu a cobrança do adicional de tarifa nas importações alegando interesse público, sob o risco de que a medida elevasse os preços de bens mais adiante na cadeia. Diante da medida excepcional tomada pelos Estados Unidos, o setor quer agora que a decisão seja reavaliada. “O Brasil no início de recuperação se torna um alvo fácil”, afirma Lyra. “Alertamos o governo que a suspensão do antidumping deveria ser revista com as novas medidas.”