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O alemão Adolf Dassler tinha 20 anos quando começou a usar seu talento de artesão para confeccionar sapatos esportivos. O ano era 1920 e a família vivia na minúscula cidade de Herzogenaurach, que ainda hoje tem apenas 30 mil habitantes. Adi, como era chamado em casa e pelos amigos, trabalhava na lavandaria de sua mãe — e ninguém levava sua ambição muito a sério. Os pais diziam que ele precisava encontrar um emprego de verdade. Com a rebeldia natural da juventude, ele não deu ouvidos. Pior. Acabou atraindo o irmão mais velho, Rudolf, para sua aventura de fabricar calçados. Adi era o criativo. Rudi, o administrador. Adi era a alma do negócio. Rudi, o cérebro. Na hora de batizar a empresa que estavam criando, recorreram, como legítimos alemães, ao pragmatismo. Nascia a Gebrüder Dassler Schuhfabrik. Em bom português: Fábrica de Sapatos dos Irmãos Dassler. E assim ficou durante alguns anos. Só depois de muitos percalços seria adotado um nome mais curto, de fácil assimilação. O visionário Adolf juntou seu apelido, Adi, às três primeiras letras do nome da família, Das.

Assim nasceu a Adidas, marca que está entre as mais importantes e respeitadas do mundo, com faturamento anual global em torno dos 20 bilhões de euros (cerca de R$ 120 bilhões), mais de 50 mil funcionários e história repleta de fatos marcantes. A trajetória da companhia é tão fantástica e intrigante que até virou filme no cinema e série de TV (leia o quadro). Agora, exatamente 100 anos após sua fundação, a empresa está lançando um fabuloso livro para celebrar a efeméride. Intitulada The Adidas Archive: The Footwear Collection, a obra traz 357 tênis, enorme quantidade de histórias interessantes, designs inovadores — inclusive protótipos — e fotos belíssimas.

DISPUTA FAMILIAR A empresa foi fundada por Adolf Dassler (à esq.), o irmão mais novo. Pouco depois, Rudolf virou sócio. Os dois nunca se entenderam. Ao sair da Adidas, Rudolf criou de outra grife esportiva: Puma. (Crédito:Divulgação)

Com capa dura e 644 páginas, o livro custa US$ 150 (cerca de R$ 800) e foi publicado pela Taschen, a famosa editora de livros de arte que já publicou obras definitivas de gênios como o pintor espanhol Salvador Dalí e o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. As imagens clicadas pelos fotógrafos Christian Habermeier e Sebastian Jäger, que usaram técnicas e equipamentos de altíssima resolução, trazem detalhes dos calçados, como manchas de lama, resquícios de lágrimas, marcas de grama e autógrafos envelhecidos. São registros vivos e comoventes das emoções dos atletas durante as competições. Isso só foi possível porque, a pedido da própria Adidas, muitos jogadores, corredores, lutadores e saltadores, entre outros, devolvem seus tênis à companhia após um evento marcante. E vale lembrar que estamos falando de uma marca que desenvolve tênis para as mais díspares modalidades, do futebol ao hóquei no gelo, do basquete ao turfe, do MMA à esgrima. Estão no livro verdadeiras preciosidades da História do esporte, como a chuteira usada pela seleção da Alemanha Ocidental que conquistou a Copa do Mundo de 1954, na Suíça, e os tênis com os quais a alemã Kathrine Switzer correu a maratona de Boston, em 1967, tornando-se a primeira mulher a disputar a prova. E também há modelos produzidos especialmente para estrelas do mundo pop, como a cantora Madonna, o cantor Pharrell Williams e a estilista Stella McCartney.

HITLER HUMILHADO É provável que nenhuma marca esportiva tenha algo tão forte e historicamente notável para contar quanto a Adidas, com sua trajetória que combina engajamento e boas sacadas de marketing. A primeira delas envolveu um jovem negro dos Estados Unidos e teve como palco as Olimpíadas de Berlim, em 1936.

Aos 22 anos, o corredor Jesse Owens chegou à Alemanha, já comandada por Adolf Hitler. Aqueles Jogos Olímpicos deveriam servir ao propósito nazista de comprovar a superioridade ariana. Segundo o ditador, um atleta negro jamais venceria um branco numa competição esportiva. Owens não apenas venceu. Humilhou. O rapaz conquistou quatro medalhas de ouro: nos 100 e nos 200 metros rasos, no salto em distância e no revezamento 4×100 metros. Para deixar Hitler ainda mais desmoralizado, Owens bateu os recordes mundiais nos 200 metros e no salto em distância. Nos pés, o velocista americano usava tênis Adidas. O próprio Adi o havia convencido a disputar as provas calçando os modelos da grife alemã. O curioso é que os irmãos Adidas — como Adolf e Rudolf passaram a ser chamados — eram fãs de Hitler e filiados ao Partido Nazista. Mesmo assim, quiseram que Owens competisse com tênis da sua marca. Uma jogada que se mostrou mais do que acertada. Graças à repercussão das vitórias e recordes do americano, as vendas da Adidas dobraram. Após a Segunda Guerra, uma foto autografada por Owens para Adi ajudaria a salvar a empresa da destruição por tropas americanas.

ONTEM E HOJE Fundada como Gebrüder Dassler Schuhfabrik, ou Fábrica de Sapatos dos Irmãos Dassler (abaixo), a Adidas foi forçada a produzir armas para os nazistas. Antes e depois da Segunda Guerra, seus tênis fizeram história no esporte (acima). (Crédito:Divulgação)

Histórias como essas tornam The Adidas Archive: The Footwear Collection um livro especial, divertido e relevante. No prefácio da obra, o designer de sapatos Jacques Chassaing foi sabiamente simples e direto, ao afirmar: “No final, são apenas sapatos usados por consumidores que os amam. Mas também são testemunhas em primeira mão de nossa história esportiva, do design e da cultura, do início da Adidas até hoje”. Há, porém, pontos cruciais da vida dos dois irmãos que não estão no livro — até por não fazerem parte da proposta da obra. Um dos mais curiosos é sobre o eterno clima de disputa que havia entre Adi e Rudi. Com a Adidas já entre as grandes marcas esportivas do mundo, Rudi decidiu romper de vez com o irmão mais novo. A rivalidade entre eles ganhava um novo capítulo: Rudi fundou a Puma, outra gigante do setor e uma das maiores concorrentes da Adidas. A briga entre Adi e Rudi se manteve até a morte do mais velho, em 1974, aos 76 anos. Apenas quatro anos mais tarde, Adi também morreu, aos 78. Os dois foram enterrados no mesmo cemitério, em sua cidade natal, ainda que em setores distantes. Nada que ofusque o brilho da trajetória da Adidas e seus tênis históricos.

No cinema e na TV

O cineasta brasileiro Fernando Meirelles costuma dizer que a ficção nunca será tão criativa quanto a vida real. A frase cai como uma luva — ou como uma meia, para ficar mais apropriado —, quando se trata da história dos irmãos Adolf e Rudolf Dassler. Além de terem fundado duas das maiores marcas esportivas do planeta – Adidas e Puma –, eles tiveram vidas repletas de episódios fantásticos, desde a infância numa família de classe média até se tornarem empresários bilionários. E tudo isso durante a Alemanha nazista de Hitler e as duas Guerras Mundiais. De tão curiosos e emocionantes, os fatos vividos pelos irmãos Dasller deram origem à série de TV Adidas X Puma: Irmãos e Rivais e ao longa-metragem Duelo de Irmãos — A História da Adidas e da Puma. Juntas, essas obras traçam um excelente panorama da vida dos dois irmãos que mudaram a história do negócio global do esporte. Vemos que Rudolf foi convocado para lutar na Segunda Guerra, mas Adolf foi poupado pelo governo. Por outro lado, Adolf foi obrigado pelo regime a usar sua fábrica de sapatos para produzir armas ao exército de Hitler. Há até intrigas familiares, alimentadas pelas esposas de ambos, que também não se davam bem. Aos brasileiros, um relato é especialmente inusitado. Com Adidas e Puma já protagonizando rivalidade mundial, Adolf e Rudolf fizeram um pacto, segundo o qual ambas as marcas iriam parar de pagar para que os atletas usassem seus materiais esportivos. O filho de Rudolf,
que ajudava o pai a administrar a Puma, quebrou o acordo para patrocinar um jovem jogador, de carreira promissora: Pelé.