A vida é aquilo que acontece enquanto estamos andando de ônibus. Pegar o “busão” é algo tão inserido no nosso cotidiano que prestamos pouca atenção ao que acontece dentro dele. Na maioria das vezes, estamos aborrecidos com o aperto da hora do rush ou com o tempo que ele demorou para passar. Ou ainda, com sorte, apenas distraídos com um livro, uma música no fone ou tirando um belo cochilo. O jornal O Estado de S. Paulo “pegou carona” em três linhas pouco convencionais de São Paulo. Os trajetos revelam contrastes da cidade – dos arranha-céus a aldeias indígenas – e incluem até travessia de balsa.

A linha 477P-10/Ipiranga-Rio Pequeno tem o trajeto mais longo da cidade, com 78 km e 304 metros de extensão, ida e volta. Passa por 18 bairros (como Butantã, Pinheiros, Itaim-Bibi, Moema, Saúde e Ipiranga, além das Estações São Judas, Saúde e Praça da Árvore) e 215 pontos. Em dia normal, fora do rush, gasta-se cerca de três horas em apenas um sentido.

A viagem no 477P-10 tem um quê educacional. Pela janela, é possível perceber a diferença econômica dos bairros. “Prefiro trajetos longos. São melhores que o pinga-pinga dos menores”, diz o cobrador Valmir Leandro de Moura. Como a maioria já não paga em dinheiro, Moura atua mais como um facilitador – avisa sobre os pontos e até acorda passageiros. O motorista, Gilson Vicente Silvério tem dez anos de linha e muita intimidade com os usuários. “Algumas pessoas já me chamam pelo nome. Perguntam da família, reclamam dos atrasos e por aí vai…”

De manhã, é comum encontrar quem tome o café em um dos bancos, retoque a maquiagem e estude. “Não tomo café da manhã. Quando eu sento no ônibus, aproveito para comer um bolinho”, avisou a atendente de loja de sapatos Loredana Martins, de 30 anos, antes de dar uma mordida no tal bolinho. Na mesma hora, Maria Teresinha Hernandes, de 66 anos, contou que aproveita a parte do trajeto que lhe cabe para ler. “Não tenho celular. Só leio. Ônibus é bom pra isso”, contou.

“A melhor coisa é aproveitar o tempo para ouvir podcasts em inglês”, diz o arquiteto Glauquer Gomes, de 29 anos. Companheiro de trajeto, Carlos Roberto Oliveira, de 70 anos, vende nos coletivos da cidade uma pomada (a “dotôzinho”) que, segundo ele, cura qualquer dor ou problema de saúde.

No fim do trajeto, motorista e cobrador alongam as pernas depois de mais de três horas de viagem ou correm para o banheiro do ponto final.

Extremo sul

Já a linha 6l05-10/Barragem-Terminal Parelheiros é bem mais curta (são 12 km e 30 paradas), mas atende as aldeias Tenondé Porã e Krukutu, às margens da Represa Billings. A Tenondé Porã conta com uma população de aproximadamente 2 mil pessoas; já a Krukutu não tem mais do que 500 habitantes.

No trecho mais rural do percurso, a paisagem não lembra em nada a São Paulo dos prédios, trânsito e poluição. A linha também atende os interessados em ecoturismo. Na Tenondé Porã, por exemplo, está a Cachoeira de Marsilac.

Os índios utilizam a linha como principal (às vezes única) forma de acesso ao centro de Parelheiros. De manhã, é comum encontrá-los levando artesanato para vender nos arredores do Terminal Parelheiros ou no centro da cidade. Também não é raro flagrar pedidos dos indígenas aos motoristas para que eles possam descer pela frente. “O ônibus é muito importante para nós. Quando precisamos de algo na cidade é com ele que a gente consegue se locomover”, diz Fernanda de Abreu, de 17 anos, moradora da tribo Tenondé, com o pequeno Micael, de 3 anos, no colo.

O clima rural da área da Barragem também está presente na linha. Zeferino dos Santos, de 88 anos, é um homem do campo. De pouca conversa, diz que quase não vai ao centro – só para ir ao médico. E não troca a região por nenhum “centro lotado de carro e de gente”.

O aposentado Antônio Dorneles diz que nem o vai e vem de ônibus tirou o sossego dos moradores da Ilha do Bororé, no extremo sul de São Paulo. Para chegar até lá, ônibus da linha 6L11-10/Ilha do Bororé-Terminal Grajaú têm de usar uma balsa que atravessa a Billings.

“Antigamente aqui era tudo estrada de terra. Agora, mudou muito. Recebemos muitas visitas, tem turista e quem trabalha com comércio ganha um dinheirinho a mais”, diz Dorneles, para quem o único problema é que “às vezes demora mais de uma hora até (o ônibus) passar”.

Turista de ônibus

A imagem de um ônibus sobre a balsa e a própria travessia pela represa tornaram o trajeto uma espécie de passeio turístico. Não é raro ver usuários fazendo selfies durante os cinco minutos sobre a água. Crianças também parecem gostar. “Mó legal esse ônibus que anda na água”, diz Antônio, de 4 anos.

A balsa é gratuita e funciona 24 horas. A região também é um ponto de ecoturismo. Áreas de Proteção Ambiental (APAs) de Bororé-Colônia e Capivari-Monos podem ser acessadas com facilidade.

Nos últimos meses, a travessia ficou mais rápida – já que as balsas estão comportando 40 veículos (o dobro do que transportavam antigamente). A rapidez só não é totalmente comemorada pela comerciante América dos Anjos Martins, de 67 anos, que tinha mais tempo para vender seus quitutes quando uma fila de carros se formava no local. “Assim não consigo dinheiro para voltar para Portugal”, disse. A linha 6L11-10 tem a função de servir como ligação da população de Bororé com unidades de saúde e escolas do Grajaú. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.