Pode o celeiro do mundo, como é conhecido o Brasil, passar fome? Pode. Apesar da fama internacional de ser uma potência na produção de alimentos, os fantasmas da miséria e da fome voltaram a se materializar durante a pandemia. E estudos já comprovam isso. O Centro de Políticas Sociais FGV Social, por exemplo, identificou que a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou sua família passou de 30%, em 2019, para 36%, no ano passado, colocando o Brasil, pela primeira vez, acima da média mundial. Outro levantamento, este da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) revela que 33 milhões de brasileiros passam fome no Brasil de hoje. Quando o recorte é ampliado para pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar, mais da metade (56%) têm falta de alimentos e nutrientes por não ter condições de comprar comida.

O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil traz dados alarmantes. O País registra nesse momento mais pessoas com fome que no início dos anos 1990, quando o Brasil tentava se erguer depois do período militar, uma economia inflacionária cruel e um governo incapaz de lidar com a realidade. A pesquisa, feita com o Vox Populi, mostrou que seis a cada dez brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar. São 125,2 milhões de pessoas nesta situação, o que representa um aumento de 7,2% desde 2020 e de 60% na comparação com 2018.

36% dos brasileiros não tinham, em 2021, condições de suprir a alimentação da família

60% foi a alta no número de pessoas com algum grau de insegurança alimentar

33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, o maior contingente desde meados dos anos 1990

De acordo com a pesquisa, em 2022, um de cada três brasileiros já fez alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para conseguir alimento. Segundo Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania e um dos apoiadores da Rede Penssan, o estudo evidencia a velocidade que os passos dados para frente podem ser regredidos. “Apenas dois anos após o Brasil sair do Mapa da Fome da ONU, em 2014, a gente já percebia que a fome voltava com força”, disse. Segundo ele seria impossível aceitar que num país com a diversidade do Brasil, tantas pessoas passem fome. “Em 29 anos de luta contra a fome a gente se vê diante de um dos piores momentos. É um retrocesso total.”

NO FIM DA LISTA Se comparado com o Brasil de 30 anos atrás a coisa não vai bem, e ao olhar o resto do mundo a situação não melhora muito. O estudo da FGV, que foi capitaneado pelo economista Marcelo Neri e usou como base os dados da Gallup World Poll, instituto de estudos com análise de dados em 160 países, concluiu que o Brasil atingiu o maior patamar de fome desde o início da pesquisa, em 2006. Foi também a primeira vez que bateu um nível de insegurança alimentar (56%) maior que a média mundial (35%). Essa triste realidade está mais do que evidente nos números do estudo. Levando em conta as 120 maiores economias do mundo, a insegurança alimentar aumentou 1,5 ponto percentual na média global. No Brasil, esse mesmo indicador saltou 6 pontos. “Recessão forte, inflação, congelamento do Bolsa Família e juros altos contribuíram para o aumento da desigualdade na base mais vulnerável”, disse Neri.

Segundo ele, a insegurança alimentar se aprofundou nos últimos anos por causa da pandemia, mas o cenário era ruim antes dela. O agravamento da miséria e da fome ganhou força entre 2014 e 2019, período em que o abismo da desigualdade começou a ficar maior. E os números da FGV Social mostram que os mais pobres pioram mais e mais rapidamente. A insegurança alimentar entre os 20% mais pobres foi de 36% em 2014 para 53% em 2019 e 75% em 2021. Alta de 22 pontos em dois anos. Já os 20% mais ricos experimentaram queda de insegurança alimentar de 3 pontos porcentuais (de 10% em 2019 para 7% em 2021). “Entre os mais pobres, níveis do Zimbábue. Entre os mais ricos, o nível de insegurança alimentar nos aproxima da Suécia”, disse Neri. Segundo o pesquisador, quando avaliamos o recorte por renda, “vemos que é uma tragédia o que aconteceu na base da distribuição”. Traduzindo: em um dos maiores produtores de grãos do mundo, quem planta, colhe, mas nem todos comem.