Definitivamente aposentaram o business plan. O anúncio mais surpreendente — entre centenas de empresas que tentavam surpreender durante a recém-encerrada CES 2020, uma das maiores feiras de tecnologia e inovação do mundo — foi da Toyota. A maior produtora de veículos do planeta vai lançar uma cidade. Não qualquer cidade. A mais futurística delas. Para apresentá-la globalmente, a empresa montou em Las Vegas um verdadeiro show conduzido por Akio Toyoda, CEO da marca. Sua frase inicial foi a insubstituível “Ladies and gentlemen”. Só que ninguém falou de dinheiro. Quanto será investido? Por quem? Retorno esperado? Perguntas que andam démodé num ecossistema de startups, em que encantar vale bem mais que o bottom line. Não é mesmo, Uber?

Isso à parte, o restante foi fantástico. E encantador. O projeto foi nomeado como Woven City e será erguido no espaço de uma unidade industrial desativada. Tem área de 710 mil m² e fica aos pés do Monte Fuji (Japão). A proposta é ter moradores já a partir do ano que vem. Woven City pretende nascer sem os vícios urbanísticos contemporâneos: será sustentável e se tornará um laboratório vivo para casas inteligentes, carros autônomos, robótica e Inteligência Artificial. Veículos e edifícios estarão sob internet das coisas em praticamente todos os aspectos da vida cotidiana. “Você sabe: se você construir eles virão”, disse Akio Toyoda. O CEO chamou o projeto de “meu ‘campo pessoal dos sonhos’”, numa referência clara ao lírico filme Campos dos Sonhos (Field of Dreams, 1989, de Phil Alden Robinson).

E quem serão eles, os que virão (esses futuros moradores)? A Toyota espera ter 2 mil já em 2021. Num primeiro momento serão funcionários da empresa, além de aposentados, pesquisadores, membros de empresas que se tornem parceiras do Woven City e até mesmo alguns desavisados que se cadastrarem no site do projeto como candidato a residente (https://www.woven-city.global/). Foi o que eu fiz. Afinal, o design todo será conduzido pelo escritório do vanguardista dinamarquês Bjarke Ingels, à frente de projetos como as novas Torres Gêmeas (Nova York), a Lego House (o museu, não a chatíssima música de Ed Sheeran), os arquipélagos artificiais Oceanix (cidades flutuantes para 10 mil pessoas) e até um projeto interespacial, o Mars Science City, que simula nos Emirados Árabes Unidos uma cidade em Marte e tem patrocínio do governo local (o dos Emirados, não o de Marte).

O projeto prevê três tipos de vias de circulação. Uma para carros autônomos em movimento rápido, com árvores separando a visão para as duas demais vias. A segunda será um modelo misto para pedestres e veículos pessoais (bicicletas, patinetes). A terceira será exclusivamente para pedestres. A ambiciosa aposta da Toyota se difere de demais experiências porque não será apenas um laboratório, mas um macroambiente de experiências reais. Além de colocar o Japão no centro da pauta de ponta da tecnologia, espaço que o país fazia tempo não ocupava. Woven City terá serviços de polícia, bombeiros, ambulância, escolas. Gente em mobilidade, trabalhando, pedindo comida, se divertindo. O diretor executivo do Instituto de Pesquisa de Desenvolvimento Avançado da Toyota, James Kuffner, resumiu bem a ideia: “É difícil aprender algo sobre uma cidade inteligente se você estiver construindo apenas um quarteirão inteligente”, disse ele à Reuters.

“Cabe a todos nós, especialmente a empresas como a Toyota, fazer nossa parte para tornar o mundo um lugar melhor” Akio Toyoda, Ceo Da Toyota. (Crédito:Ross d. Franklin)

BOLA DE CRISTAL A indústria automobilística, sempre entre os principais propulsores econômicos de qualquer país, fazia parte da elite tecnológica até as empresas ponto.com surgirem. Retomar o prestígio é condição sine qua non para seu futuro. Isso significa testar e expandir o portfólio além dos carros. O CEO Akio Toyoda diz que “cabe a todos nós, especialmente a empresas como a Toyota, fazer nossa parte para ajudar a tornar o mundo um lugar melhor”. O executivo, ao abrir sua apresentação na CES 2020, em Las Vegas, disse que nenhuma indústria busca mais encontrar uma bola de cristal do que a de automóveis. Woven City será a bola de cristal da Toyota.

Com isso, Akio Toyoda também cria uma conexão com seu bisavô e fundador do império, Sakichi Toyoda. Considerado o maior inventor japonês, ele fundou uma empresa ligada ao mundo da tecelagem. Seus teares incentivaram a industrialização do país no fim do século 19 e começo do 20. Nos anos 30, Kiichiro, filho de Sakichi, viu nos carros o motor da economia global e criou na companhia do pai um Departamento de Automóveis. O restante é história. A Toyota liderou o ranking das montadoras por anos (em 2019, ficou em segundo, atrás da VW). O neto de Kiichiro é Akio. E foi este quem deu para sua cidade do futuro o nome de Woven — palavra em inglês que significa tanto “tecer” quanto “entrelaçar”. Ao homenagear a origem de tudo e olhar para o passado ele se jogou no futuro.