12/01/2018 - 18:00
Em 1964, ano em que o Brasil começava a sua luta contra a ditadura militar, Sidney Poitier venceu o Oscar de melhor ator por sua atuação no filme “Uma Voz nas Sombras”. Era a primeira vez que um negro recebia a maior premiação do cinema americano. “Quem subiu ao palco foi o homem mais elegante que eu havia visto”, recordou Oprah Winfrey, atriz e apresentadora mais poderosa dos Estados Unidos, em discurso de agradecimento ao prêmio Cecil B. DeMille, do Globo de Ouro, concedido a ela pelo conjunto de sua obra, na semana passada. “Eu nunca havia presenciado um homem negro sendo celebrado daquela maneira.”
Winfrey continuou dizendo que jamais foi capaz de explicar o quanto aquele momento significou para uma pequena garotinha que, sentada no chão de madeira de casa, aguardava sua mãe retornar do trabalho, “cansada até os ossos”, após passar o dia limpando a casa dos outros. “Em 1982, Sidney recebeu o Cecil B. DeMille. Para mim, não passa despercebido que, hoje, há pequenas garotinhas assistindo eu me tornar a primeira mulher negra a receber o mesmo prêmio”, afirmou Winfrey, antes de ser interrompida pelos aplausos.
O discurso foi o ápice de uma noite de protestos. Winfrey vestia preto, assim como a maioria das mulheres. Foi a forma escolhida para repudiar os casos de assédio sexual denunciados no ano passado, que envolveram figuras proeminentes de Hollywood, como o produtor Harvey Weinstein e o ator Kevin Spacey. A apresentadora, dona de um patrimônio estimado em US$ 2,9 bilhões, no entanto, foi além em sua fala. Ela exaltou a necessidade de liberdade de imprensa, apresentou uma perspectiva histórica da luta por direitos civis e trouxe para o centro do debate o protagonismo da mulher negra. Oprah, agora, é considerada uma forte concorrente ao cargo de presidente dos Estados Unidos.
A repercussão do protesto e do discurso provocou uma resposta da atriz francesa Catherine Deneuve. “O estupro é um crime”, disse Deneuve, em carta assinada por outras 100 personalidades francesas. “Mas o flerte insistente ou desajeitado não é um delito nem o galanteio uma agressão machista.” No texto, a atriz se posiciona contra o puritanismo. “Lá, censuram um nu de Egon Schiele num pôster; aqui, se pede a retirada de um quadro de Balthus de um museu sob a alegação de que seria uma apologia à pedofilia.” Seu argumento é de que as pessoas não são monolíticas. “Uma mulher pode, ao longo do mesmo dia, dirigir uma equipe profissional e gozar por ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma vagabunda nem uma vil cúmplice do patriarcado”, afirma.
O aparente conflito entre as posições de Winfrey e Deneuve está na dificuldade em estabelecer limites. “Eu costumo dizer que o limite está na extensão do meu braço”, diz Adriana Barbosa, criadora da Feira Preta, o maior evento de empreendedorismo negro da América Latina. “Se uma brincadeira ou cantada me ofende, é porque invadiu meu espaço, então deve parar.” Mas, apesar de ser um contraprotesto, o texto de Deneuve traz pontos convergentes com o discurso das feministas.
Em linhas gerais, o que as mulheres, e também os negros, reivindicam é por seu espaço. Não se trata de uma oposição ao homem ou aos brancos. “As mulheres são 52% da população no Brasil e os negros 54%. Mas onde estão?”, questiona Alexandra Loras, ex-embaixadora da França no País. A pouca representação nos espaços de poder é o problema a ser combatido. Essa situação de desequilíbrio está exposta de forma mais contundente na mulher negra. Enquanto uma profissional branca recebe o equivalente a 70% dos vencimentos de um homem branco pela mesma função, a negra ganha 40%, segundo dados da consultoria McKinsey & Company.
Os tempos, no entanto, são outros. Na medida em que a revolução digital avança, as pessoas e, consequentemente, os consumidores, se tornam mais conscientes. Um estudo realizado pela consultoria Box 1824, em parceria com a McKinsey, aponta uma característica importante da chamada Geração Z, formada pelos nascidos entre 1995 e 2010: a inclusão levada ao extremo. “Independentemente da ideologia, essa geração age pelo senso de comunidade e por interesses em comum, convivendo com diferenças antes inimagináveis”, diz a consultoria. Isso significa que a tolerância com atos de estupidez, mesmo que disfarçados de deslizes ou brincadeiras, está chegando, rapidamente, a zero. “As empresas precisam entender que o consumidor leva essas questões a sério”, diz Eduardo Tomiya, diretor-executivo na América Latina da Kantar Consulting, especializada em marcas. “É preciso praticar em casa o que se coloca como valor da marca. Ou pode ser catastrófico.”
Recentemente, algumas empresas sentiram os efeitos dessa nova ordem. Uma campanha do sabonete Dove, da Unilever, gerou repúdio ao retratar o negro como sujo – a marca, que se posiciona a favor do feminismo, alegou que foi um mal entendido, retirou a campanha do ar e pediu desculpas. A grife brasileira Reserva foi acusada de racismo ao pendurar manequins pretos de ponta cabeça em uma promoção. A varejista sueca H&M também teve de se desculpar por vestir o único menino negro de uma peça publicitário com um moletom escrito “o macaco mais legal da selva”. E, no caso mais extremo, o presidente da americana Salesforce no Brasil, Maurício Prado, foi demitido após autorizar uma festa, na qual um funcionário foi vestido de “negão do Whatsapp” – o funcionário e um diretor também foram desligados. Procuradas, Unilever, Reserva e Salesforce não se manifestaram. A H&M não possui operação no Brasil.
O caso da Salesforce talvez seja o mais emblemático. Em grande medida, os aspectos machista e racista da fantasia passaram despercebidos pela direção nacional de uma empresa moderna, que atua no setor de tecnologia e é umbilicalmente ligada à inovação. Para Alexandra Loras, é uma mostra do quanto o Brasil está longe de ser, de fato, uma democracia racial. “No ano passado, 90% dos atletas que vieram à Olimpíada eram brancos. A maior parte da produção pornográfica mundial é feita por brancos. Mas são os negros que são retratados como os bons em esportes e como donos de um sexo de um metro”, diz a ex-embaixadora. “Essa é uma forma de nos rebaixar a papeis não intelectuais e objetos sexuais, como a globeleza. Não se fala que Oscar Freire era negro, que Machado de Assis era negro, que foram negros que inventaram a geladeira (John Standard) e o celular (Henry Thomas Sampson).” O caminho ainda é longo. Mas, como disse Oprah ao final do seu discurso: time is up! Não há mais lugar para a estupidez, seja por cinismo ou ignorância.