Em seus primeiros negócios no pregão da B3, a bolsa de valores brasileira, as ações da companhia de saúde Rede D’Or registraram uma forte alta. Os papéis chegaram a subir 13% na abertura, na quinta-feira (10). Só esse movimento agregou, em poucos minutos, R$ 13 bilhões ao valor de mercado da rede hospitalar fundada há 43 anos pelo cardiologista carioca Jorge Moll Filho e que hoje opera 52 hospitais, com a segunda maior rede de clínicas oncológicas do Brasil. Em seu lançamento, o grupo havia sido avaliado em R$ 104 bilhões. Para comparar, o valor de mercado é superior aos R$ 102 bilhões do Banco do Brasil.

Por vários motivos, o Initial Public Offering (IPO) da Rede D’Or foi um momento emblemático do mercado de capitais brasileiro. Uma das razões foi o desempenho na largada. Pela primeira vez em muito tempo, as ações de uma empresa estrearam com valorização. Outro motivo foi o porte. Ao girar R$ 11,5 bilhões, o IPO foi o segundo maior em valor nominal. Perdeu apenas para os R$ 13 bilhões da abertura do Santander Brasil, realizada em 2009. E, finalmente, pelo sucesso. Pela primeira vez em vários anos os papéis saíram significativamente acima do piso da faixa indicativa de preços. Foram cotados no lançamento a R$ 57,92, ante uma previsão mínima de pouco mais de R$ 48.

Isoladamente, o IPO da Rede D’Or indicaria um momento excelente do mercado de capitais brasileiro. Colocado no contexto, ele mostra uma mudança muito mais profunda. Uma alteração no patamar e nos parâmetros do mercado. Ao movimentar R$ 11,5 bilhões, o lançamento da rede hospitalar elevou o total de recursos captados neste ano para R$ 112 bilhões incluindo aberturas de capital e ofertas subsequentes (follow-ons), que ocorrem quando uma empresa aberta oferece mais um lote de ações aos investidores.

Egberto Nogueira

“Nunca tivemos tantas aberturas de capital em preparação quanto em 2020. temos 70 nomes em nossa lista” Cláudia Mesquita, Diretora do Banco Bradesco BBI

A cifra é um recorde histórico. E traz outra novidade: foi um fenômeno coletivo. Nunca antes a Bolsa de Valores foi um investimento tão popular entre os brasileiros. Pelas contas da B3, a empresa que gerencia o vaivém das ações, no fim de novembro havia cerca de 3,2 milhões de investidores pessoas físicas que tinham pelo menos uma ação em seu portfólio.

Uns poucos números mostram como o mercado mudou. Em 2004, quando as aberturas de capital da Natura e da Gol sinalizaram uma retomada aos pregões, o investimento em ações era algo para poucos, a maioria estrangeiros. Naquele ano, a Bolsa encerrou os trabalhos com 116 mil CPFs registrados. Foram movimentados R$ 8,8 bilhões em aberturas de capital e ofertas subsequentes, e os investidores estrangeiros ficaram com 64% disso. Ou seja, dois de cada três reais movimentados. Em 2020, sem considerar o lançamento da Rede D’Or, a participação dos investidores internacionais caiu para 24%. De cada quatro reais em ações oferecidos, três foram absorvidos por investidores brasileiros, sejam pessoas físicas, sejam investidores institucionais, como fundos de ações ou fundações de previdência privada.

INVESTIDOR SEM MEDO Segundo Felipe Paiva, diretor de Clientes da B3, o número de participantes do pregão cresceu em 2020 apesar da volatilidade do mercado provocada pela pandemia. (Crédito:Divulgação)

CENÁRIOS Tantas e tão profundas mudanças têm três causas. A primeira delas é internacional. Desde 2012, os bancos centrais dos países desenvolvidos vêm lançando sucessivos pacotes de estímulo monetário em suas economias. “Isso gerou uma queda de juros e uma inundação de liquidez global sem precedentes na história”, disse o CEO da empresa de gestão de fundos de private equity Stratus, Álvaro Gonçalves. “Boa parte desses recursos migraram para os mercados acionários, e o Brasil não foi exceção.” Gonçalves avalia que esse movimento veio para ficar, por razões óbvias. O impacto da pandemia sobre a economia fez com que os bancos centrais tivessem de comprar quantidades inéditas de títulos públicos e privados, para manter solventes as empresas e os governos. Assim, se elevarem muito os juros, os banqueiros centrais vão promover a quebra das instituições que comandam. “Por isso os juros deverão permanecer mundialmente baixos durante muito tempo, o que é um estímulo aos mercados acionários sustentável no longo prazo”, disse Gonçalves.

Essa razão seria suficiente para animar qualquer pregão, mas há outro fator específico do Brasil. Os empresários perderam o medo do mercado de capitais. “A mentalidade de não dividir o controle, que era prevalente há uma ou duas gerações, está se dissipando”, disse Gonçalves. O dono de uma empresa brasileira sabe que, se abrir o capital de sua empresa e atrair investidores, ele terá menos controle, mas muito mais dinheiro no bolso. Gonçalves parte para uma comparação alimentar. “O empresário percebeu que é mais negócio ter uma fatia de uma melancia do que 100% de um grão de uva.” Segundo ele, há pelo menos 200 empresas de capital fechado e de médio porte, de vários setores da economia, que estão mais ou menos adiantadas com a lição de casa para tocar a campainha na B3 no próximo ano.

Demanda existe. Segundo o diretor responsável por fusões e aquisições da consultoria internacional Duff & Phelps, Alexandre Pierantoni, a pujança dos pregões facilita aos grandes investidores, como os fundos de private equity, vender com lucro as empresas em que investiram. O mercado de capitais e o segmento de fusões e aquisições são diretamente ligados, e sua colaboração cria um círculo virtuoso que eleva o valor das empresas. “Os investidores profissionais, tanto estratégicos quanto financeiros, que estiveram presentes em 70% dos IPOs nos últimos dez anos, têm aproveitado o momento para apostar na economia real”, afirmou.

IPO MEMORÁVEL O médico carioca Jorge Moll Filho fundou uma clínica na Zona Sul do Rio de Janeiro há 43 anos. Na quinta-feira (10) a Rede D’Or realizou a segunda maior abertura de capital da história em valores nominais. (Crédito:Edilson Dantas)

Como se não bastasse, empresas de regiões antes distantes do mercado entraram no radar dos bancos de investimento. O grupo varejista maranhense Mateus é uma potência nas regiões Norte e Nordeste, mas pouco conhecido no Centro Sul. Isso não impediu a empresa de liderar, durante algum tempo, a lista das aberturas de capital deste ano. Em outubro, o Mateus levantou R$ 4,2 bilhões em um IPO, que só foi superado pelo da Rede D’Or. Além de mostrar para os empresários de fora do eixo Rio-São Paulo que a B3 não é algo impossível, o lançamento colocou empresas do Norte e do Nordeste na lista dos banqueiros.

INVESTIDORES EM PROFUSÃO A disposição dos empresários de vir a mercado é uma condição necessária, mas não suficiente. De nada adianta o empreendedor brasileiro querer enfrentar as agruras de um IPO se não houver interessados nas ações. Por isso o otimismo da própria B3. Essa é a terceira causa para a animação. Neste ano, o número de investidores bateu recorde. “É algo impressionante, ainda mais se falarmos que isso ocorreu nos últimos dois anos, depois de ficarmos muito tempo na expectativa de chegarmos ao primeiro milhão de investidores”, disse o diretor de Relacionamento com Clientes da B3, Felipe Paiva. “A volatilidade observada no mercado de capitais e provocada pela pandemia seria um possível motivo para a quebra desse ciclo, mas, mesmo assim, a base de investidores pessoa física seguiu em ascensão”, afirmou.

Segundo Paiva a B3 foi surpreendida por esse movimento. A crença dos profissionais do mercado era que a jornada dos investidores individuais seria como subir uma escada. Começaria pelas aplicações básicas, como a caderneta de poupança, e gradativamente crescendo em complexidade. Indo para, pela ordem, Tesouro Direto, aplicações de renda fixa, fundos de investimento e só então ações. Na prática, isso não ocorreu. “Foi possível identificar que os investidores, especialmente os mais jovens, são mais propensos a começar a investir de maneira diversificada, tendo contato com vários produtos e sem seguir essa lógica”, afirmou. Em vez de escada, a nova geração tende a enxergar as opções de investimento como um mosaico, em que é possível transitar livremente em múltiplas direções.

Henrique Peron

“O empresário percebeu que é melhor ter uma fatia de uma melancia do que 100% de um grão de uva” Álvaro Gonçalves, CEO da gestora stratus.

Gonçalves, da Stratus, aponta outro fator. Os investidores jovens acreditam em alinhar seu dinheiro suas ideias. Assim, uma empresa que não respeitar os princípios de responsabilidade social, boa governança corporativa e sustentabilidade ambiental terão dificuldade para encontrar clientes para seus produtos e acionistas para seus papéis. “O investimento em ações permite, mais do que a renda fixa ou títulos públicos, esse alinhamento de ideias”, disse Gonçalves. “Se a empresa começar a desmatar a Amazônia, é mais fácil para o investidor vender as ações e partir para uma companhia mais sustentável.”

Claudia Mesquita, diretora do banco Bradesco de Investimentos a cargo da divisão de Equity Capital Markets (ECM), é a responsável por trazer as empresas à bolsa. Apesar da crise, ela avalia que 2020 vai ficar na história do banco. “Nunca tivemos tantas empresas em preparação para abrir capital”, disse. Os nomes são sigilosos, pois algumas ainda não protocolaram essa intenção junto à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), mas o número supera 70 candidatos. “Para comparar, encerramos 2019, que não foi um ano ruim, com 40 nomes listados”, disse ela. E a executiva afirma que o próximo ano já começa aquecido. “Tivemos cerca de 50 operações em 2020, mas outras 50 que já estavam prontas foram adiadas devido à pandemia e a condições momentaneamente adversas de mercado”. Adiadas, mas não canceladas. “Tudo indica que já temos pelo menos 50 emissões prontas para ser realizadas em 2021, se o momento do mercado for favorável.” Por isso, a executiva diz acreditar que o recorde de 2020 será novamente quebrado no ano que vem. E a conta das 70 cujos IPOs estão na linha de montagem vale só até abril. “Depois disso, eu espero que haja muito mais nomes”, disse ela. Segundo Pierantoni, da Duff & Phelps, os candidatos mais prováveis virão do agronegócio, da tecnologia e de setores já em alta como varejo, saúde e educação. Que venha 2021.