Só há uma coisa mais poderosa que um dragão. Um matador de dragões. Ao longo de quatro anos o presidente Jair Bolsonaro tumultuou, pressionou, dividiu e incitou o caos institucional no Brasil para ser a força dominante no dia a dia do brasileiro. O resultado disso foi uma campanha eleitoral recheada de desinformação, destempero e despreparo, mas que foi decidida nas urnas e resultou na vitória do ex-presidente (agora eleito pela terceira vez) Luiz Inácio Lula da Silva. Antes mesmo de reassumir o posto que deixou em 2010, Lula desponta como capaz de curar as feridas democráticas e recolocar o Brasil na rota do crescimento econômico. Para isso terá de escalar um time de craques, que entre em campo com todas as credenciais para vencer, além do dragão do bolsonarismo que ainda resiste, os desafios que impedem o País de ser próspero e com justiça social.

A vitória de Lula foi ao mesmo tempo amplamente comemorada e obstinadamente colocada em dúvida. Ele sabia disso. Tanto que antes do início oficial da campanha desenhou uma estratégia. Líderes do partido com bom trânsito no Legislativo e no Judiciário conversaram com a cúpula dos outros Poderes negociando que o reconhecimento do resultado eleitoral fosse feito de modo célere, para legitimar a vitória e impedir qualquer contestação. Na diplomacia, Lula entrou em contato com ex-embaixadores e ex-diplomatas para articular apoio imediato de líderes internacionais, em especial a dos parceiros comerciais — o que ocorreu logo após a contagem de votos. Exemplo disso foi o pronunciamento do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, apenas 40 minutos após a confirmação da vitória de Lula. Bolsonaro esperou 40 dias para reconehcer que Biden havia sido eleito. O alto comando do generalato brasileiro (pelo menos o que se considera de Estado, e não de governo) também foi instado e a resposta foi a melhor possível: não vamos interferir. Por fim, ao vice-presidente eleito Geraldo Alckmin coube a função de se aproximar do empresariado e angariar nomes que estariam dispostos a ajudar o governo nesse projeto de reconstrução.

Menos de duas horas após a oficialização do resultado, Lula foi a um hotel no centro de São Paulo fazer seu discurso. Não de vitória, como é a praxe, mas de posse. A morte do dragão havia sido sacramentada. Um político próximo ao presidente eleito contou como foram essas horas. “Havia uma certeza: Bolsonaro não aceitaria o resultado. Iria repetir o que Trump fez. Por isso tínhamos que garantir que ele estivesse isolado.” Quando se trata de neutralizar o dragão, é preciso lembrar que ele só existe na figura de um mito.

No caminho de quem luta para que o Brasil deixe as sombras do mito da caverna orquestrado pelo governo anterior estão alguns nomes de consenso do mercad. Economistas, gestores e políticos mais conectados com as práticas econômicas que têm dado certo mundo afora. São pessoas como reconhecidas por seus currículos: Armínio Fraga, Henrique Meirelles, Jean Paul Prates, Pérsio Arida, Bernard Appy, além de políticos experientes como Geraldo Alckmin, Rui Costa, Wellington Dias e Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo derrotado na eleição para governador. Todos capazes de manter pacto anunciado por Lula em seu primeiro discurso após a eleição: “Manter o diálogo, conversar com o divergente e encontrar as melhores práticas para que o Brasil cresça, a desigualdade diminua e as pessoas voltem a ter esperança”.

Alianças de um velho-novo mundo

Maior votação da história da república brasileira, os mais de 60,3 milhões de eleitores que referendaram Lula estavam espalhados em todas as classes sociais e regiões do País, e por isso talvez venham de todos os lugares os nomes dos potenciais parceiros do petista na gestão que se inicia em 2023. Além de Haddad, foram importantes na trajetória que culminou na derrota de Bolsonaro o governador da Bahia, Rui Costa, o senador pelo mesmo estado Jaques Wagner, os ex-governadores Flávio Dino e Wellington Dias e o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha. Para cuidar da Fazenda, os nomes de Haddad e Dias figuram entre os preferidos da legenda. Nenhum deles, no entanto, tem ampla aceitação no mercado, que esperava um nome mais conectado com a economia.

De fato é o time menos ligado à política que tem causado mais expectativa. Isso porque Lula deu sinais de que a frente ampla não se encerrou na eleição e continuará ativa durante seu governo. Logo de saída Lula determinou que Alckmin coordenasse a equipe de transição do governo, em um gesto que dá ao seu vice-presidente condições de fazer raio-X inicial da gestão Bolsonaro.

NOVO COMANDO Governo eleito estuda nomes para presidir a Petrobras. Foco será em geração de energia limpa, com a transição para o hidrogênio. (Crédito:Andre Ribeiro/Banco de Imagens Petrobras)

O primeiro passo, inclusive, já foi dado, com o vice-presidente se reunindo com os autores do Orçamento na Câmara e negociando a construção de uma PEC, ainda este ano, para liberar os recursos do Bolsa Família de R$ 600 ano que vem. Uma jogada de mestre e que pode garantir ao ex-tucano um ministério, sendo o da Indústria e Comércio Exterior, pasta que geralmente funciona como um balcão de aproximação do governo com os empresários, o mais provável.

E se Alckmin está no jogo, ao lado dele estão velhos aliados do mercado. Henrique Meirelles, Pérsio Arida e Armínio Fraga estão entre os cotados para integrar o governo de transição, aconselhar ou dar ideias para a gestão. Bernard Appy também aparece nas cotações internas, além de Felipe Salto, ex-diretor do Instituto Fiscal Independente (IFI) e ex-secretário da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo.

Salto, muito próximo de Alckmin, é um dos mais cotados para assumir o Tesouro Nacional. Dele é esperada a criação de uma alternativa ao teto de gastos. A formulação de uma métrica de investimentos que acompanhe o superávit, gatilhos para arrochos e a retirada de Saúde e Educação da linha de corte estão entre os desejos de Lula.

Gabriel Galípolo, ex-presidente do banco Fator, também esteve próximo ao PT e seu nome começou a surgir como opção ainda na campanha eleitoral. Para ele, segundo estimativas iniciais, seria dado o BNDES. Dele é esperado que o banco volte a ter o prestígio de outrora, mas há o desafio de dividir melhor os recursos liberados. Lula prometeu em campanha diversificar o crédito para setores, tamanhos e perfis diferentes empresas.

MONTAGEM OTIMISTA Programa do governo prevê retomada do Ministério da Indústria, o que fortalece o setor. (Crédito:Istock)

Outro nome estudado com cautela e discrição é quem assumiria a Petrobras. O senador Jean Paul Prates (PT-RN) é cotado para o cargo, mas tudo ainda é incipiente. O argumento é que o senador possui o perfil para guiar a petroleira num sentido mais sustentável, com avanço da produção de gás natural como um combustível de transição para o hidrogênio. Advogado e economista, Prates tem quase 30 anos de experiência no setor de petróleo e gás. Pela relação com o Senado, o potencial novo presidente da estatal poderia negociar também soluções legislativas para a questão dos combustíveis. O problema, no entanto, é que se o PT deslocar muitos senados para o governo, ele pode enfraquecer a própria base na Casa.

Como senador, o petista defende a construção de referências regionais na composição dos preços. Segundo o projeto, a ANP calcularia os preços de referência, produzindo os valores oficiais. Há também o projeto para criação da “conta de estabilização de preços”, texto de autoria do senador e que foi aprovado, mas acabou barrado pelo atual ministro da Economia, Paulo Guedes. Tema sensível em qualquer governo, o comando da Petrobras é especialmente delicado numa gestão lulista. Talvez por isso as repostas sobre a condução sejam hoje o maior ponto cego do mercado, e por isso mesmo pode ser um dos últimos anúncios do time econômico do novo governo.

A expectativa de quem produz

A polarização expressa nas urnas reflete com exatidão o mix de expectativa, desapontamento e euforia no setor produtivo. Embora temas abstratos como banheiro unissex, ideologia de gênero e fechamento de igrejas não estejam nos debates mais sóbrios, empresários, executivos, entidades de classe e economistas avaliam com cautela o resultado das urnas, sem abrir mão da perspectiva de guinada nos principais eixos da política macroeconômica do governo Bolsonaro.

Um dos principais é a área ambiental. “Lula fez um ótimo discurso, de acolhimento, de abertura, de reinserção do Brasil na agenda mundial, também do ponto de vista ambiental”, disse Fabio Barbosa, presidente da multinacional brasileira Natura&Co, em entrevista à Folha de S.Paulo. “Mas a prioridade número 1 agora é detalhar o seu programa econômico, definir quais são os nomes da equipe econômica e como vai endereçar a questão fiscal”, disse ele, que também é ex-presidente do Santander Brasil e da Febraban (Federação Brasileira de Bancos).

Na visão de Patrícia Krause, economista-chefe da empresa de avaliação de risco Coface na América Latina, os pilares do programa de governo de Lula são positivos. Ela destaca a renegociação da dívida das famílias e o aumento real do salário mínimo. “A dúvida é qual será a alternativa para acomodar aumento dos gastos, com respeito ao teto de gastos ou a uma nova âncora fiscal”, afirmou. “Já na política monetária, não deve haver mudanças. A independência do Banco Central garante isso.” Outro ponto que parece ter animado os empresários foi a repercussão mundial. Para Welber Barral, estrategista de comércio exterior do Banco Ourinvest e ex-secretário de Comércio Exterior, “a reação positiva deve garantir um fluxo crescente de investimentos para o Brasil, algo urgente, considerando a infraestrutura do País”.

CAMINHO DO CONSUMO Empresas de shoppings, como a Multiplan, foram destaque na B3. Retomada do consumo anima investidores.

A mudança de inquilino do Palácio da Alvorada também deve ajudar a acalmar o cenário de insegurança jurídica e risco político sobre a economia, de acordo com a economista Adriana Dupita, ex-executiva de bancos como Santander e Citibank e especialista em Brasil e a Argentina para a Bloomberg Economics. Ela considera que o atual presidente gerou muita instabilidade nos últimos anos. O próprio Lula repetiu diversas vezes em campanha que no Brasil são três as palavras mágicas para o sucesso de um governo: previsibilidade, credibilidade e estabilidade. “E faltam as três na atual gestão”, disse.

E em direção a essas três palavrinhas mágicas que o agronegócio, uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro, tem esvaziado a ofensiva contra o resultado das urnas (até porque eles sabem o impacto que isso pode ter no campo). Em nota, a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) defendeu a retomada da diplomacia para tratar das questões da geopolítica global, do combate ao desmatamento e para o diálogo incessante entre os entes privados e o governo. “Respeitamos a democracia, acima de tudo. Afinal, o voto depositado é um voto de confiança, que nos é um sentimento inegociável”, informa a entidade.

Para Xico Graziano, membro do Conselho Científico Agro Sustentável, dificilmente haverá retrocessos com a volta do petista, pois cadeias produtivas criaram dinâmicas menos dependentes do Estado. “A força das cadeias produtivas ligadas ao mundo rural criou uma dinâmica própria, essencialmente capitalista, de base tecnológica, pouco dependente do Estado”, disse Graziano. “Diferentemente do que muitos imaginam, o custo dos subsídios agrícolas, para todos os programas, soma R$ 9,5 bilhões, o que dá 0,6% do dispêndio público total.” Isso significa que até os mais descontentes podem respirar aliviados.

A realidade de quem especula

Na Faria Lima parte dos investidores estava atônita, incomodada e até perdida na manhã da segunda-feira (31). Quem havia especulado por uma vitória de Bolsonaro acabou perdendo muito dinheiro. Com isso, no day after da vitória de Lula no segundo turno, os operadores locais esperavam uma forte baixa no Ibovespa e foram surpreendidos por fluxo positivo de agentes estrangeiros.

Antes da abertura do pregão no Brasil, no pré-mercado em Nova York (EUA), as ações da Petrobras recuavam 9%, e o EWZ, o principal ETF (fundo) brasileiro, cedia 5%, ou seja, pintava um clima de dia negativo na Bolsa brasileira.

AMAZÔNIA VALIOSA Retomada da agenda ambiental vai garantir mais recursos para proteção das florestas do Brasil. (Crédito:Aleksandr_Vorobev)

No Google Trends, entre as personalidades, a palavra Lula era a mais buscada no mundo nas últimas 24 horas até às 9h30 do mesmo dia 31. Quando o mercado abriu em terras tupiniquins, uma série de ordens de compra por estrangeiros mudou o rumo do dia. Aos poucos, o Ibovespa que começou em queda de cerca de 2% foi reduzindo as perdas, virou o sinal e fechou em alta de 1,31%.

O fluxo positivo de entrada mexeu com o câmbio, o dólar recuou 2,5% naquele dia e caiu mais 0,92% no dia seguinte (1º), a R$ 5,119 no mercado à vista da B3. Ainda na terça-feira, o Ibovespa surpreendeu novamente e avançou mais 0,77%, aos 116.928,66 pontos, antes de qualquer reflexo negativo do aumento de juros nos EUA na quarta-feira (2) e no pregão de quinta-feira (3) no Brasil.

Em resumo, a alta de ações dos setores de educação, varejo e consumo e de companhias aéreas e turismo mais que compensou as quedas fortes dos papéis das estatais Petrobras e Banco do Brasil.

O diretor de investimentos do multi family-office Somma, Joaquim Kokudai, observou a entrada de capital externo na Bolsa . “O investidor estrangeiro está com uma visão mais otimista sobre o Brasil com o futuro governo Lula. Antes do segundo turno, o investidor local prevalecia”, afirmou.

ATIVIDADE EM MOVIMENTO Perspectiva de mais capital estrangeiro pode garantir novos canteiros de obras pelo País. (Crédito:Eduardo Knapp)

Em live para investidores, o economista-chefe da XP, Caio Megale, comentou que o Brasil está em destaque no cenário internacional. “É um País exportador de commodities, o petróleo continua num preço elevado, o preço de grãos valorizado. Há muito interesse pelo Brasil e as nossas contas externas estão bem”, disse. Por causa da situação fiscal das contas públicas, Megale contextualizou que o câmbio ainda está num patamar desvalorizado. “O câmbio talvez volte para R$ 5 ou para R$ 4,70 por dólar”, afirmou.

Mas como se explica essa nova tendência do câmbio para baixo? Para o estrategista da RB Investimentos, Gustavo Cruz, é a agenda ambiental. “Essa pauta trabalha a favor de Lula, que possui um plano robusto para o meio ambiente.” Tanto é que Noruega e Alemanha já sinalizaram o retorno dos recursos para o Fundo Amazônia, que foi paralisado na gestão Bolsonaro. A perspectiva é de que caso o presidente eleito participe da Conferência do Clima (COP 27) agora em novembro e esse otimismo externo aumente. O mesmo vale para reunião de Davos, encontro em que o petista estuda apresentar seus programas de governo. Um golaço diplomático que promete atender toda a demanda represada dos últimos quatro anos.

Evandro Rodrigues