Na quarta-feira 17, o executivo David Marcus passou várias horas repetindo o que já diz há tempos. O CEO da Calibra, subsidiária do Facebook dedicada à criação da Libra, moeda virtual proposta pela empresa de Mark Zuckerberg, tentava, mais uma vez, convencer os deputados americanos que a companhia não quer destruir o sistema financeiro internacional. Sem muito sucesso. Marcus depôs no Comitê de Finanças da Câmara dos Deputados. Vários parlamentares, especialmente os oposicionistas do Partido Democrata, o pressionaram para que ele se comprometesse a interromper o processo de desenvolvimento da moeda. Ou, ao menos, permitisse que esse desenvolvimento fosse fiscalizado mais de perto pelas autoridades monetárias dos Estados Unidos.

Marcus ateve-se ao discurso de que a Libra não será lançada antes que as preocupações e dúvidas dos reguladores estejam sanadas. Mas, para irritação dos deputados, ele não se comprometeu a interromper os trabalhos. “O senhor vai parar de dar voltas ao redor dessa questão e suspender o desenvolvimento da moeda até o Congresso regulamentar o assunto?”, perguntou a deputada californiana Maxine Waters, presidente do Comitê. “Concordo que esse assunto precisa ser mais analisado e prometo que teremos tempo para fazer tudo corretamente”, disse Marcus. Mas parar o processo foi algo que o executivo não curtiu. Esperam-se repetições desse diálogo, com pequenas variações, ao longo dos próximos meses.

Os deputados americanos não têm sido os únicos a torcer o nariz para a Libra. Na mesma quarta-feira, em um encontro de ministros das Finanças do G7, Olaf Scholz, ministro da Alemanha, juntou-se ao coro dos descontentes. “A Libra está na cabeça de todos nós”, disse ele. “A emissão de moedas é um assunto para estados soberanos, e que não deve ficar nas mãos de empresas privadas.” Apesar de as autoridades alemãs serem as mais abertas à inovação das moedas virtuais na Comunidade Europeia, as declarações de Scholz vão ao encontro das preocupações de seus colegas. Mesmo Mark Carney, presidente do Banco da Inglaterra (o Banco Central inglês), tem sido cauteloso. Inicialmente, ele elogiou os benefícios em potencial da Libra, como baratear as transações e facilitar as remessas de dinheiro. Porém suas declarações mais recentes têm enfatizado os riscos. “Não podemos deixar as pessoas perderem o dinheiro que está em suas carteiras”, disse ele.

É fácil entender a preocupação. Se fosse um Estado nacional, seus 1,4 bilhão de usuários tornariam o Facebook não só o mais populoso, mas provavelmente o mais rico deles. E o fato de a rede social criada por Mark Zuckerberg estar pensando em desenvolver seu próprio dinheiro é algo que tira o sono de ministros das finanças e de banqueiros centrais ao redor do mundo (observe o quadro) pela possibilidade de retirar dos Estados o poder de fazer política monetária e, no limite, regular o nível de atividade econômica, que é a atribuição mais importante dos bancos centrais.

Essa preocupação só surgiu devido ao tamanho potencial da Libra. As moedas virtuais fazem parte da paisagem dos mercados desde 2008, quando surgiu o bitcoin. Apesar de o Japão estar promovendo sua circulação oficialmente, e mesmo que moradores de países com inflação elevada, como a Venezuela, estarem recorrendo às criptomoedas, essas iniciativas sempre foram restritas e superficiais. A Libra é algo totalmente diferente.

David Marcus, CEO da Calibra, subsidiária do Facebook dedicada à criação da moeda virtual, tem sido pressionado pelos deputados americanos para interromper o processo (Crédito:Stefani Reynolds)

CESTA DE MOEDAS Em primeiro lugar, é uma moeda estável, definida pelo termo técnico stablecoin. Ou seja, em vez de ser produzida como o bitcoin e vendida pelo preço do mercado no momento, a cotação da Libra estará vinculada a uma cesta das principais moedas: dólares americanos, libras esterlinas, euros e ienes. “Suas cotações vão oscilar pouco, ao contrário do que ocorre com o Bitcoin e as outras moedas virtuais mais conhecidas”, diz o economista Thiago Cesar, CEO da gestora suíça de fundos de critpomoedas Transfero Swiss, que lançou sua própria stablecoin, ligada ao real brasileiro.

Segundo Cesar, as primeiras stablecoins surgiram como uma ferramenta para os especuladores em bitcoins. Como as cotações são muito voláteis, fazia sentido criar uma moeda que não oscilasse. “A ideia era, literalmente, ter um lugar para estacionar o dinheiro enquanto não se estivesse operando”, diz Cesar. Não tardou para que os profissionais do mercado percebessem que essas moedas estáveis seriam muito úteis para transferir dinheiro de uma pessoa para outra, especialmente quando emissor e receptor estão separados por milhares de quilômetros de distância, pelas barreiras de uma economia fechada ou pelas leis.

Poderiam, por exemplo, facilitar a vida de um desenvolvedor de software na Indonésia que trabalhasse para uma empresa na Holanda. Receber seus pagamentos seria muito mais rápido, fácil e barato. Porém, assim como poderiam ajudar países menos desenvolvidos, também facilitariam a vida de nações menos comprometidas com a segurança global. O interessado em comprar material nuclear da Coreia do Norte resolveria o assunto com alguns cliques e, teoricamente, sem enfrentar nenhuma sanção das autoridades americanas. E mesmo que as intenções sejam legais e legítimas, a existência de uma moeda privada, não regulada e não controlada seria o pesadelo de qualquer sistema de arrecadação de impostos.

As autoridades e o sistema bancário já se movimentam. Daniel Coquieri, um dos diretores da bolsa e corretora de criptomoedas Bitcoin Trade, diz que boa parte de seu trabalho é parecido com o de um executivo de segurança de um banco. “Temos 70 mil clientes ativos e 250 mil cadastrados, e passamos muito tempo verificando a origem do dinheiro e conferindo a identidade de quem está fazendo negócios”, diz ele. O cuidado permite à Bitcoin Trade trabalhar com os grandes bancos brasileiros, que não são os mais receptivos às plataformas de negociação.

Cesar, da Transfero, entende o motivo. Atualmente, moedas virtuais e tradicionais não apenas coexistem como também têm vários pontos de contato. Por exemplo, quem quiser comprar bitcoins ou, no futuro, Libras do Facebook terá de pagar essas aquisições com reais, dólares ou euros, e realizar essas transações por meio de contas-correntes ou cartões de crédito. “As autoridades vão fiscalizar de maneira pesada as conexões entre as moedas virtuais e o sistema monetário tradicional”, diz Cesar. A pressão sobre Zuckerberg não deve acabar tão cedo.