Habituada a um vaivém diário, a portaria do número 899 da Avenida Taboão, em São Bernardo do Campo (SP), viu sua rotina ser alterada desde 19 de fevereiro. Naquela data, a Ford anunciou que encerraria as atividades da fábrica, a mais antiga da companhia em operação no Brasil, até o fim de 2019. No dia seguinte, com a perspectiva de perderem os seus empregos, quatro mil trabalhadores do local cruzaram os braços. E durante seis semanas, a unidade do ABC Paulista não produziu nenhum caminhão ou mesmo um único Fiesta. O silêncio nas linhas de montagem só foi interrompido na manhã da terça-feira 2, quando os funcionários reassumiram, pouco a pouco, seus postos. O plano não era convencer a matriz americana a mudar de posição, mas sim buscar uma alternativa para solucionar a questão. “Queremos mostrar a qualquer interessado que a fábrica funciona e que tem uma equipe muito qualificada”, diz Wagner Santana, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Mais que um movimento isolado dos funcionários, a iniciativa tem como pano de fundo as negociações para encontrar um novo dono para a fábrica. O processo conta com a participação do governo do Estado. E ganhou fôlego nos últimos dias. Segundo fontes próximas às conversações, há três concorrentes no páreo.

O favorito para levar o ativo é o grupo brasileiro Caoa, cujo nome une as iniciais de seu fundador, Carlos Alberto de Oliveira Andrade. Velho conhecido do setor, o empresário fez fama e fortuna com sua rede de concessionárias e se consolidou como o principal revendedor de marcas como Hyundai, Subaru e a própria Ford. Além dos negócios de distribuição, a companhia produz parte do portfólio da Hyundai em sua unidade própria instaldada em Anápolis (GO). E, desde o fim de 2017, está à frente de uma joint venture local com a montadora chinesa Chery. Batizada de Caoa Chery, a operação conta com uma fábrica em Jacareí, interior de São Paulo.

Há cerca de um mês, Mauro Correia, CEO da Caoa, já havia confirmado o interesse na fábrica da Ford em entrevista à DINHEIRO. Na época, o executivo destacou que a ideia ainda era embrionária. Nas últimas semanas, no entanto, a conversa atingiu outro patamar com a assinatura de um acordo de confidencialidade entre as duas partes para a potencial compra do ativo. Além da preservação dos empregos, o negócio envolveria, a princípio, a manutenção da fabricação de caminhões, sob licença, nos mesmos moldes da parceria que a brasileira mantém com a Hyundai. Procuradas, Caoa e Ford não se manifestaram. A assessoria de imprensa do governo paulista, por sua vez, informou que existe a possibilidade de um anúncio até o fim deste mês, com o nome de quem assumirá a operação depois de novembro, quando a montadora americana deixará a unidade.

Na linha: Carlos Alberto Oliveira de Andrade, fundador da Caoa, já produz caminhões da Hyundai em Anápolis (GO) (Crédito:Werther Santana/AE)

DIÁLOGO Em meio a essa espera, as motivações por trás de um eventual acordo entre Caoa e Ford ainda estão restritos às especulações. Fontes consultadas pela DINHEIRO dizem que o acordo se justifica por duas razões. A mais óbvia é o relacionamento de mais de quatro décadas entre as duas empresas. Como maior distribuidora da Ford na América Latina, a Caoa teria um diálogo facilitado com companhia americana. Ao mesmo tempo, Andrade, que hoje ocupa a presidência do conselho da Caoa, nunca escondeu o desejo de consolidar uma montadora brasileira, um caminho que ele começou a construir ao se associar à Chery, no fim de 2017. Transferir as operações da joint venture com a chinesa para a fábrica de São Bernardo do Campo, no entanto, é pouco provável. “Se essa opção fosse considerada, a fábrica de Anápolis, com muitos incentivos fiscais, se encaixaria melhor na estratégia”, diz Milad Neto, analista da consultoria Jato Dynamics.

Nesse contexto, a aposta restrita ao segmento de caminhões faria mais sentido por ampliar o portfólio da Caoa e fortalecer o projeto do fundador de uma montadora nacional. A empresa não é exatamente uma novata no segmento já que produz, em Anápolis, dois modelos de caminhões da sul-coreana Hyundai. Em outra ponta, o grupo poderia trazer benefícios para a operação. Em 2018, a Ford ficou com o quarto lugar em vendas no segmento, com uma participação de 12,18%, atrás de Mercedes Benz, MAN (Volkswagen) e Volvo. “A Caoa, historicamente, é muito agressiva em vendas e marketing. E teria mais agilidade que uma empresa global, como a Ford”, diz Rodrigo Custódio, analista da consultoria Roland Berger. Ele cita ainda sinergias potenciais como o maior volume de compras de matérias-primas como o aço, o que daria mais poder de barganha junto a fornecedores. Outra frente é a possibilidade de a brasileira aplicar todo o seu conhecimento no varejo e na distribuição para aprimorar a rede de concessionárias de caminhões Ford.

DESAFIOS Esse cenário não exclui, porém, alguns desafios. A diferença na abordagem comercial de automóveis para caminhões é um deles. “Enquanto a venda de um automóvel é emocional, a comercialização de um caminhão é puramente técnica e racional”, afirma Neto. “A Caoa teria que desenvolver melhor essa abordagem, já que é um mundo menos explorado pelo grupo.” Outra questão ganharia contornos mais críticos no longo prazo, com a consolidação de tecnologias e inovações como os caminhões elétricos, o que exigiria aportes elevados por parte da Caoa. “Chegará um momento em que será difícil seguir sozinho no jogo”, diz Custódio.

A parceria entre montadoras é uma tendência crescente. A própria Ford firmou, no início do ano, uma aliança global com a Volkswagen para o segmento de automóveis. De acordo com o analista, não seria improvável que, ao manifestar real interesse pela fábrica da montadora americana em São Bernardo do Campo, a Caoa já tenha um acordo alinhavado com uma montadora de caminhões que ainda não atua no Brasil, como as chinesas Sinotruck, Dongfeng e FAW, e a indiana Tata. “A própria Hyundai, que tem muito mais caminhões do que aqueles que são oferecidos pela marca hoje no Brasil, seria uma parceira em potencial.”


O novo imbróglio de Ghosn

Enquanto a novela da fábrica da Ford no País caminha para um desfecho, uma outra trama em curso na indústria automotiva ganhou novos capítulos — e parece longe do final. Na manhã da quinta-feira 3, Carlos Ghosn (acima. na foto), ex-CEO da aliança formada pela francesa Renault com as japonesas Nissan e Mitsubishi, foi preso novamente em Tóquio. O executivo franco-brasileiro havia deixado a cadeia no início de março, depois de pagar uma fiança de 1 bilhão de ienes (US$ 9 milhões). Os primeiros 108 dias na prisão foram resultado de acusações de sonegação e má conduta financeira. As novas suspeitas recaem sobre um suposto desvio de US$ 34 milhões por meio de uma distribuidora Nissan-Renault em Omã.

Entre outros destinos, o dinheiro teria sido usado por Ghosn para a compra de um iate. A prisão foi antecedida por um comunicado no qual a Nissan acusou o executivo de violar a ética da companhia. A empresa também informou que irá cortar boa parte das bonificações referentes a 2018 e o pagamento de contribuições previdenciárias, no valor de € 765 mil. Até então, a montadora evitava qualquer crítica ao executivo. No mesmo dia, Ghosn, que nega os crimes, havia usado o Twitter para falar sobre os imbróglios que vieram à tona desde novembro do ano passado: “Estamos nos preparando para dizer a verdade sobre o que está acontecendo. Coletiva de imprensa na quinta-feira, em 11 de abril”. A conferir.