Na madrugada de 5 de março de 1916, o transatlântico espanhol Príncipe de Astúrias, que levava oficialmente 588 pessoas entre tripulação e passageiros, naufragou na costa de Ilhabela, litoral norte do Estado de São Paulo. Ao menos 445 pessoas morreram naquele que ainda hoje é considerado o mais trágico acidente marítimo do país.

Toda a história e uma coleção de peças resgatadas do navio naufragado, que ficou conhecido como “Titanic brasileiro” por lembrar a tragédia do grande navio britânico, estão expostas para o público no Museu Náutico de Ilhabela, inaugurado no último mês.

O acervo reúne objetos de prata, talheres, cristais, faianças e peças desse e de outros navios que afundaram a partir do século 18 nos arredores da ilha. Muitas peças, como âncoras, bússolas e escotilhas foram recuperadas por mergulhadores e caçadores de tesouros ao longo do último século.

Desses, muitos mergulharam em busca de toneladas de barras de ouro que, segundo relatos com contornos de lenda, eram transportadas no transatlântico espanhol. No arquipélago de Ilhabela há registro de 16 embarcações naufragadas e documentadas, além de mais 12 que esperam confirmação, e várias outras desconhecidas, encontradas por mergulhadores.

Os primeiros naufrágios documentados aconteceram entre os anos de 1882 e 1890. Quase metade das embarcações, entre elas o Príncipe de Astúrias, naufragou entre 1900 e 1920.

O transatlântico era operado pela companhia espanhola Pinillos Izquierdo y Cia e foi encomendado para fazer a linha regular de passageiros e cargas entre Barcelona e Buenos Aires, passando por Cádiz, Las Palmas, Ilhas Canárias, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu. Após ser construído, em 1914, era considerado o transatlântico mais luxuoso da Espanha, ao lado do ‘irmão gêmeo’ Infanta Isabel.

O local do naufrágio passou a ser um dos mais disputados pontos de mergulho do País. Os restos do navio estão a 40 metros de profundidade. Entre os achados expostos estão desde o capacete de um escafandro (traje usado por mergulhadores) até a cabeça de uma boneca alemã de porcelana.

Essas e outras relíquias que estavam encaixotadas, estão agora expostas no museu. No total, são cerca de 1.200 peças, datadas a partir do século 18, além de maquetes dos principais navios naufragados na região.

Parte do material foi adquirida pela prefeitura do pesquisador e mergulhador grego Jeannis Platon, que durante anos explorou o naufrágio. O acervo traz ainda 21 painéis com informações e imagens dos restos submersos e um painel de seis metros com a linha do tempo, indicando naufrágios desde 1825 até 1990.

Documentação

A exposição sobre as embarcações que afundaram na região resulta de recente pesquisa do historiador e arqueólogo Plácido Cali, que trouxe novos dados e imagens dos naufrágios, organizando as informações com base em documentação recolhida no Arquivo Público do Estado de São Paulo, Museu da Imigração, Porto de Santos, Arquivo do Tribunal Marítimo da Marinha do Brasil, Museu Marítimo de Barcelona, Biblioteca Náutica da Universidad de La Laguna (Espanha), Tyne & Wear Archives & Museums do Reino Unido, e Museu Nacional do País de Gales.

Conforme Cali, é a primeira vez que o acervo é reunido e exposto de forma organizada, inclusive com peças que estavam com colecionadores. Ele produziu também o livro “Naufrágios de Ilhabela”, editado pela Secretaria de Cultura do município, com a cronologia e todas as informações históricas acerca dos naufrágios. Distribuído na inauguração do museu, o livro traz também fotos inéditas do Príncipe de Astúrias e de outras embarcações naufragadas.

Segundo o arqueólogo, o acervo será ampliado com o repatriamento de peças do navio espanhol e de outras embarcações que, na falta de um local de exposição em Ilhabela, foram levadas para outros museus ou estão em posse de colecionados.

“Como agora temos um museu oficial, estamos requisitando ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) autorização para reunir em Ilhabela todas as peças resgatadas do ‘Astúrias’. Há uma resolução que dá prioridade de detenção do patrimônio arqueológico ao município onde ele foi localizado”, disse.

O historiador já sabe que muitas peças estão com colecionadores ou em outros museus, como o de Santos e o da Marinha, no Rio de Janeiro. No Rio, está uma das 12 esculturas de bronze em tamanho natural que seriam levadas para compor o “Monumento dos Espanhóis”, em Buenos Aires.

Como o navio levava também 21 grandes hélices para embarcações, 20 âncoras de ferro e 900 toneladas de corrente para o arsenal da Marinha, algo desse material ainda pode ser encontrado e repatriado.

Primeiro fim de semana tem cerca de 2 mil visitantes

O museu, que no primeiro fim de semana de funcionamento recebeu quase 2 mil visitantes, apresenta também a história dos faróis costeiros de Ilhabela, como o Farol Ponta do Boi, de 1900, ainda existente. O prédio que foi restaurado para sediar o museu é um dos ícones da história da cidade, pois foi inaugurado em 1913 para abrigar a antiga cadeia e o Fórum local.

As celas com os presos ficavam no piso térreo, enquanto no andar superior funcionavam as salas de audiências, do tribunal do júri e dos juízes. O edifício é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) desde 2001.

O secretário municipal de Cultura, Marquinhos Guti, disse que o museu traz ao público peças, histórias e documentos inéditos sobre os naufrágios, com interesse não só para a população e turistas, mas também para pesquisadores.

“Nosso plano é destinar o principal salão do museu exclusivamente ao Príncipe de Astúrias. Esse espaço se insere em outros atrativos culturais que estão recebendo mais de mil visitantes por dia, o que torna Ilhabela um destino turístico mesmo fora da temporada de verão”, disse.

Entenda como aconteceu o naufrágio do Príncipe das Astúrias

Além de ser um navio potente e moderno, o Príncipe de Astúrias era luxuoso. Possuía uma biblioteca para uso exclusivo dos passageiros, em estilo Luís XVI com estantes de mogno e assentos de couro. A cobertura superior servia como espaço de lazer e era protegida do vento por vidraças coloridas. O restaurante era decorado com painéis de carvalho japonês e quadros com molduras de nogueira.

Havia também uma cúpula coberta com vitrais coloridos, salão de música e um salão de entrada com uma grande escadaria de corrimãos trabalhados em madeira e o chão decorado com tapetes persas. Um piano foi construído especialmente para ser tocado a bordo.

No dia do naufrágio, o navio se dirigia ao porto de Santos, fazendo sua sexta viagem à América do Sul. Além das 588 pessoas oficialmente embarcadas, o navio levava 12 estátuas de bronze, um automóvel Renault 35 HP e uma suposta quantia de 40 mil libras em ouro.

Naquela noite houve um baile à bordo devido ao carnaval, tanto na Espanha (Carnaval de Cádiz) quanto no Brasil. Uma forte tempestade, com vento e neblina, obrigou o capitão a baixar a velocidade. O navio também alterou sua rota, passando entre as ilhas de Vitória e Búzios – na rota original o navio passaria direto por Ilhabela.

Às 4h15 da madrugada, a proa bateu violentamente nas lajes submersas da Ponta da Pirabura e um buraco de cerca de 40 metros foi aberto no casco. Os porões se encheram de água rapidamente e, com a inundação da casa das caldeiras, ocorreu uma explosão que deixou o navio no escuro.

Sem eletricidade, o telegrafista não pôde mandar o pedido de socorro. Os passageiros foram acordados com o impacto, mas poucos conseguiram subir ao convés de botes. Dois minutos depois da colisão, a proa já estava submersa. Com o navio quase todo “empinado” e adernando, o trabalho de baixar os botes foi impossível. A proa bateu no fundo do mar e depois o navio, já adernado, emborcou, afundando em poucos segundos.

Toda a tragédia aconteceu em 5 minutos. A título de comparação, o Titanic, depois de colidir contra um iceberg, levou duas horas para submergir, quatro anos antes, em abril de 1912. Essa tragédia, no Atlântico Norte, deixou 1.517 mortos.

No caso do Príncipe das Astúrias, oficialmente, 143 pessoas sobreviveram e 445 morreram. Apesar da lista de a lista de embarcados conter 588 nomes, havia suspeitas de haver cerca de 800 imigrantes clandestinos espremidos nos porões do navio, fugindo da Guerra de 1914 na Europa. Assim o número subiria para 1.388 pessoas a bordo. Como não se sabe se algum desses imigrantes sobreviveu, o número passaria para 1.245 mortos, mas não há confirmação.

O fato é que muitos corpos foram recolhidos em praias distantes, como a de Ubatuba, a 40 quilômetros do local do naufrágio. Eram tantos os cadáveres que, por vezes, os caiçaras os enterravam na areia, depois de retirarem joias e outros objetos de valor. Uma das praias do arquipélago passou a ser conhecida como a Praia das Caveiras.

Para Cali, é provável que houvesse mais pessoas a bordo do que a contagem oficial. “O navio tinha capacidade para 1.860 pessoas. Nunca saberemos ao certo quantas vidas foram perdidas na tragédia.” Já o ouro que estaria a bordo, pelo que se sabe, nunca foi encontrado.

Veja quais são os naufrágios documentados na região

1882, 12/12 – O vapor inglês Crest, de 86 m de comprimento, levava sacas de café de Santos para Nova York, quando afundou com a força das ondas em um costão de Borrifos. Até hoje não se sabe se a tripulação sobreviveu.

1884, 11/09 – O cargueiro inglês Dart, também carregado com café, naufragou na Ponta de Sepituba, após colidir com rochedos. O barco britânico ficou conhecido como ‘navio das louças’ devido à grande quantidade desse material resgatada pelos mergulhadores.

1905, —- – O barco a vapor Atílio afundou depois de colidir com o veleiro Altair, próximo à Ponta das Anchovas.

1908, 16/10 – O transatlântico Velásquez, do Reino Unido, chocou-se com rochas próximo à Ponta da Sela e afundou. Quase toda a tripulação e passageiros se salvaram em botes, mas perdeu-se a carga de 2.133 sacas de café.

1909, 21/03 – O cargueiro inglês Hathor encalhou em uma laje próximo à Ilhabela e, após a saída da tripulação e retirada da carga, foi desmantelado até afundar.

1913, 03/10 – O rebocador Guarany, da Marinha brasileira, fazia exercícios militares ao sul da Ponta do Boi, quando colidiu com o navio mercante brasileiro Borborema e afundou, causando a morte de 28 tripulantes, inclusive 8 jovens marinheiros da Escola Naval do Rio de Janeiro.

1916, 05/03 – O luxuoso navio espanhol Príncipe de Astúrias, com 140 m de comprimento, 17 de largura e 39 de altura, com 588 pessoas a bordo, colidiu com rochas na Ponta de Pirabura e, em menos de cinco minutos, foi a pique. Ao menos 445 pessoas morreram.

1919, 03/02 – O vapor Therezina, originalmente chamado Siegmund e que ganhou esse nome após ser confiscado pelo governo brasileiro dos alemães por refugiar-se em águas brasileiras durante a 1.a Guerra Mundial, partiu ao meio após atingir as pedras da Ponta do Boi. A tripulação se salvou.

1920, 23/07 – O cargueiro Aymoré, fabricado na Inglaterra e incorporado ao Lloyd brasileiro, encalhou em rochedos na Ponta do Ribeirão e foi abandonado até afundar no Canal de São Sebastião.

1929, 03/02 – O veleiro São Janeco, de fabricação inglesa, naufragou na Ponta da Sela, provavelmente devido ao mau tempo. Não se sabe se houve vítimas.

1942, 05/07 – O iate à vela Rosa naufragou em Borrifos com carga de 800 sacas de açúcar, após ser envolvido por um temporal. Faltam informações sobre possíveis vítimas.

1943, 03/07 – Durante a 2.a Guerra Mundial, o submarino alemão U.513 torpedeou e afundou o navio Elihu B. Washburne, no Canal de São Sebastião. Os 42 marinheiros, 25 guardas-armados e 3 passageiros foram salvos por balsas.

1943, 23/10 – O navio Campos, antes chamado Asunción e apreendido dos alemães, foi atacado pelo submarino alemão U.170, próximo à Ilha dos Alcatrazes. Os torpedos afundaram o navio e mataram 11 pessoas.

1959, 29/10 – O cargueiro espanhol Concar afundou, depois de ficar 22 dias encalhado na Ponta de Piraçununga. As cargas que caíram ao mar, inclusive caixas de perfumes franceses, foram saqueadas pelos caiçaras.

1961, 23/04 – O pesqueiro Urucânia foi a pique após bater em rochas no sul da ilha, próximo a Borrifos. Um pescador salvou os 20 tripulantes, mas um acabou morrendo.

1991, 30/12 – O petroleiro cipriota Alina P. sofreu uma explosão na proa cujo impacto chegou a estilhaçar as vidraças das casas em Barequeçaba. A tripulação saltou para o mar e apenas um tripulante morreu carbonizado no incêndio. Após o bombeamento e recuperação do óleo, numa operação que durou 18 dias, o navio foi rebocado para alto-mar a afundado próximo a Alcatrazes.

Serviço

O Museu Náutico de Ilhabela fica na Praça Coronel Julião, 115, na Vila, centro histórico da cidade. Visitação gratuita, de segunda a quinta, das 10 às 18 horas, e de sexta a domingo, das 10 às 21.