O massacre a sangue-frio ocorrido no semanário francês Charlie Hebdo, que vitimou 12 pessoas, está sendo comparado a um 11 de setembro para a imprensa mundial. Enquanto multidões tomavam as ruas de Paris e de outras cidades europeias manifestando seu repúdio ao crime e defendendo o direito de expressão, milhares de jornalistas em todo o mundo divulgaram mensagens de apoio. Até mesmo o veterano cartunista francês Albert Uderzo, criador do Asterix, abandonou sua aposentadoria e divulgou uma charge em que seus personagens homenageavam os colegas mortos.

Quando passar o luto e a vida retomar seu curso, a discussão será sobre os limites da liberdade de imprensa. Essa questão, que tomará muitas horas em redações e faculdades de comunicação, já havia sido levantada em 2012 por Laurent Fabius, então ministro das Relações Exteriores da França. Naquele ano, os editores do Charlie Hebdo haviam ignorado as recomendações do governo e publicado caricaturas do profeta Maomé nu e tendo relações sexuais. Como resposta ao clamor levantado no mundo muçulmano, autoridades francesas tiveram de fechar temporariamente embaixadas, centros culturais e escolas em 20 países.

“Será sensato ou inteligente jogar gasolina no fogo?”, perguntou, retoricamente, Fabius na ocasião. Implícitas na indagação de Fabius estão as diferenças culturais entre europeus e árabes, entre cristãos e muçulmanos. Em fevereiro de 2013, quando Bento XVI renunciou ao cargo, o Charlie Hebdo publicou uma caricatura em que o papa beijava apaixonadamente um soldado da Guarda Suíça. A imagem poderia ofender um europeu fervorosamente católico, mas sua reação mais extremada seria, talvez, processar a publicação. Isso não quer dizer que os europeus são pacíficos e os árabes, selvagens. Significa, apenas, que há enormes diferenças culturais e sociais que têm de ser encaradas pelos maiores e mais importantes países da Europa.

O Velho Continente é, em boa parte, uma região muçulmana. Um em cada 11 franceses e um em cada dez alemães eleva, regularmente, orações a Alá. Eles não podem ser rotulados como estrangeiros que professam uma religião exótica. Muitos deles são franceses de segunda ou terceira geração, filhos ou netos de imigrantes. São contribuintes, trabalhadores e, principalmente, eleitores. “A comunidade muçulmana é bem integrada pelo governo francês, participa de programas sociais, tem ajuda governamental muito forte. Mas os franceses tratam seus imigrantes de forma muito preconceituosa e discriminatória”, diz Jorge Mortean, mestre pela Escola de Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores do Irã e doutorando em geografia política pela USP.

Para ele, atentados como o da quarta-feira 7 podem dificultar ainda mais a integração, colocando entraves à imigração de africanos e asiáticos, inclusive cristãos. Com a taxa de natalidade decrescente – e negativa em países como a Itália –, a Europa dependerá, cada vez mais, de mão de obra imigrante para manter suas economias em funcionamento. Acenar com o endurecimento das leis de imigração, como já foi levantado por partidos de extrema direita franceses e grupos alemães, deverá tornar ainda mais estreito o já árduo caminho europeu para a recuperação de sua economia.