As vésperas de completar 51 anos do Ato Institucional Número 5 (AI-5), o fantasma dos piores anos do período militar brasileiro voltou a dar as caras no noticiário dentro e fora do Brasil. Até aí, nenhuma novidade. Não é a primeira vez que pessoas próximas ao presidente Jair Bolsonaro fazem menções ao período de chumbo. O problema, desta vez, é que quem mencionou os anos mais sombrios do regime militar foi o ministro da Economia, Paulo Guedes. Avalista do plano econômico do atual governo, Guedes era encarado pelo mercado como contraponto moderado às falas mal colocadas do presidente. Tentando justificar o motivo pelo qual o Brasil não seria contagiado pelas manifestações na América Latina, o ministro falou o que não devia:
“Não se assustem se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”

E prossguiu: “Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática”, disse ele, nos Estados Unidos. Ainda que o próprio ministro tenha, ao final de sua frase, tentado explicar que o AI-5 não está à altura da democracia brasileira, já era tarde. Um tsunami de críticas surgiu todos os lados e acertou em cheio indicadores como o dólar e a Bolsa de Valores. Se for verdade o dito de que a há três coisas que nunca voltam — a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida — Guedes cometeu os três erros. Ao tentar atingir a esquerda e citar o AI-5, o ministro também perdeu oportunidade de não “atiçar” mercado.

“O mercado já precificou, por exemplo, as falas dos filhos do presidente. O problema é quando algo assim vem de Paulo Guedes”, afirmou um alto dirigente de uma das maiores instituições financeiras do País, em condição de anonimato. O executivo afirmou ainda que a fala do ministro sobre se acostumar com o dólar alto deixou o mercado inquieto. “Quanto é alto? R$ 5? R$6? O mercado vai testar”. Diante dessas afirmações, o dólar chegou a bater R$ 4,27 no dia 26, um recorde desde a criação do real. Foram necessárias duas intervenções do Banco Central para controlar o câmbio.
A bolsa fechou o dia com queda de 1,26%.

Para Fernando Bergallo, diretor de câmbio da FB Capital, a fala de Guedes é um sinal. “Ao afirmar que não está preocupado com o câmbio em alta, ele manda um recado claro ao mercado, de que o BC não intervirá, e isso reforça a percepção de que haverá novos cortes na Selic, o que reduz a remuneração para ativos estrangeiros de capital especulativo aqui no Brasil”.

André Alírio, economista e operador de renda-fixa da Nova Futura Investimentos, afirma que para além da fala de Guedes, o regime cambial brasileiro tem mudado, o que pode gerar ruídos. “Não só Guedes, mas o presidente do BC, Roberto Campos Neto, declarou que o regime cambial brasileiro será de flutuação suja. Em um mercado tão volátil, não é papel do Banco Central gerar mais instabilidade”, afirma.

PÉ NO FREIO Governo federal desacelerou as reformas econômicas para evitar que uma onda de manifestações tome as ruas do Brasil e atrapalhe o andamento da retomada econômica (Crédito:AP Photo/Andre Penner)

Contágio nas ruas Enquanto o mercado se adapta ao dólar, nas ruas o povo pode reagir, como acontece no Chile, Argentina, Equador e Bolívia. O historiador Gabriel Gurgel, doutor em atos populares no século 19 ressalta que este “contágio” é comum. “O Brasil viveu isso em junho 2013, quando os atos começaram contra a tarifa dos transportes e virou o ‘Fora Dilma’”. Já o professor de economia e relações internacionais da UFRJ, Everton Costa, acredita que a permanência da crise e os impactos da alta do dólar no preço dos alimentos e combustível darão voz à oposição, mas não na mesma proporção do Chile. “Ainda há grande apoio ao presidente, mas se a economia não reagir, as chances aumentam”. E é justamente para evitar isso que o ministro reduziu o ritmo das reformas. “É verdade que desacelerou. Quando todo mundo começa a ir para rua sem motivo aparente, é melhor parar e não dar nenhum pretexto. Vamos entender o que está acontecendo”.

Segundo ele, o presidente segue comprometido com as reformas e, mesmo preocupado com o que se passa na América Latina, não tem “medo” de que ex-presidente Lula fortaleça a oposição. “Aparentemente digo que não [Bolsonaro não está com medo do Lula]. Ele só pediu o excludente de ilicitude”. O excludente de ilicitude citado por Guedes faz parte de outro polêmico projeto de lei de Bolsonaro. O texto isenta a punição os militares, policiais federais e agentes da Força Nacional que cometam excessos ou matem em operações sob o decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

REAÇÕES Às falas do ministro não faltaram críticas vindas dos Legislativo e do Judiciário. “O AI-5 é incompatível com a democracia. Não se constrói o futuro com experiências fracassadas do passado”, afirmou na terça-feira 26 o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) também questionou. “Ele [Guedes] gera uma segurança na sociedade e, principalmente, nos investidores. Usar dessa forma, mesmo que sendo para explicar o radicalismo do outro lado, não faz sentido. Por que alguém propõe o AI-5 se o ex-presidente Lula — que acho que está errado também — estimula manifestação de rua? O que uma coisa tem a ver com a outra? Por uma manifestação de rua, a gente fecha as instituições democráticas?”

As críticas vieram também de pessoas alinhadas com o pensamento liberal de Guedes. “Não tem ‘mas’, nem ‘porém’, nem ‘todavia’. Quando, e se, houver protestos, a democracia está equipada para lidar com eles. Nada justifica autoritarismo”, afirmou o economista Alexandre Schwartsman, sócio-diretor da Schwartsman & Associados Consultoria Econômica.

“A máscara do liberalismo caiu. As ruas estão tranquilas. A cabeça dele [Guedes], não”, afirmou a também economista Elena Landau, que na década de 1990 era chamada de “musa das privatizações”. Enquanto políticos, economistas, analistas e cidadãos pareciam ter uma opinião sobre as polêmicas falas de Guedes, o presidente Bolsonaro se esquivou de comentar o tema.