Quem já precisou reformar uma casa sabe a frustração de ver uma rachadura na parede e saber que, se nada for feito, ela vai crescer. Essa deve ser a sensação do ministro da Economia, Paulo Guedes, ao ver avançar a trinca no teto de gastos do governo federal, mecanismo instituído por meio da Emenda Constitucional 95 para controlar as despesas públicas. Em uma perspectiva de aumento do desemprego, juros, dívida pública e inflação para o ano que vem, tudo indica que a rachadura de hoje causará um desabamento em 2021. Não há solução fácil para Guedes. Mesmo que haja um esforço para redução de gastos, não sobrará dinheiro para financiar programas de transferência de renda ou investir em infraestrutura. Caso a decisão seja derrubar o teto, será necessária uma articulação longa com o Congresso, além de desagradar o mercado. O tempo não corre a favor do ministro. Segundo uma estimativa da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado, ainda que o governo reduza as despesas discricionárias para R$ 112,7 bilhões (1,5% do PIB) a governança se tornará inviável, havendo quase nenhuma massa de manobra para novas despesas primárias, o que é praticamente impossível em meio à pandemia. “Esses fatores combinados fazem com que, na visão da IFI, o risco de descumprimento do teto em 2021 permaneça elevado”, afirmou o diretor-executivo do órgão, Felipe Salto.

No relatório de novembro, a estimativa é de que, num cenário de moderado otimismo, o Brasil só atinja os patamares pré-Covid em 2022, deixando 2021 com fortes sequelas econômicas. A principal delas está ligada à geração de emprego, que deve continuar baixa, com desemprego em 16,1%. “A recuperação vai ser muito lenta. É um processo diferente do que aconteceu na crise de 2008-2009, em que a recuperação em ‘V’ se deu de forma mais clara”, disse. “Sobretudo, porque havia uma formalização no mercado de trabalho, tinha uma relação de preços relativos entre os setores de serviços e de indústria que favorecia o crescimento dos serviços e, portanto, contratação de mão de obra de maneira mais intensa.”

O uso da letra “V” para definir a retomada foi muito usada por Paulo Guedes e, ainda que os indicadores de PIB e movimentação econômica apontem uma reação no terceiro trimestre (alta de 9,1%), ela não chegou perto de recuperar as perdas na casa dos 25% do segundo trimestre. Para Zuenir Crusué, que foi secretário de orçamento de Henrique Meirelles no governo Michel Temer e um dos homens por trás da elaboração do Teto de Gastos, é impossível falar de retomada em V enquanto não houver vacinação em massa no País. “Vamos verificar nos próximos anos um crescimento em L. Uma forte queda, seguida de uma estagnação temporária”, disse.

E se não há espaço para gastos em 2021, Guedes já sinalizou que o governo precisará encontrar caminhos. Em evento para supermercadistas na capital paulista, o ministro afirmou que, caso confirmada uma segunda onda de contaminação da Covid-19 no Brasil, o auxílio emergencial será reativado. “Não é possibilidade. É certeza”, garantiu. Diante disso e sem garantia de aprovação do Estado de Calamidade pelo Congresso em 2021 (que permitiu neste ano que os gastos extrapolassem o Teto), a conta do governo não fechará.

TOMA LÁ, DÁ CÁ – Apesar de formalmente garantir que o teto não será furado, em Brasília o ministro já admitiu que o governo pode rediscutir a descontinuidade do teto de gastos, se o Congresso retirar amarras do Orçamento, desindexando, desvinculando e desobrigando as contas públicas. Esse pacote de medidas, que, durante a campanha de Bolsonaro em 2018, era chamado de “Plano DDD”, sempre foi a menina dos olhos de Guedes e daria ao ministro carta branca para usar o orçamento como bem entender, retirando a obrigatoriedade do governo de destinar um valor determinado pelo Congresso para saúde e educação, por exemplo. “Enquanto o Brasil não tiver a coragem de enfrentar esse problema de indexação automática das despesas, em que a classe política não controla 96% do Orçamento, não podemos sonhar em abrir mão dessa bandeira do teto”, afirmou Guedes, em evento promovido pela Exame.

A questão levantada pelo ministro divide economistas. Por um lado, despesas obrigatórias – como folha de pagamento, Previdência e outros benefícios – sufocam o orçamento a ponto de não restar espaço para investimentos e novas políticas públicas, mas também garante que a máquina pública sempre funcione. Para Guedes, o sonho de viver “sem um teto” só acontecerá quando não houver vinculação de gastos. Em fevereiro deste ano, antes da pandemia, o ministro tentou levar o assunto ao Congresso, mas sem sucesso. Em uma sabatina no Senado, disse que o governo era “refém do Congresso”. “Vocês (parlamentares) precisam devolver o protagonismo do governo nas escolhas orçamentárias”, disse. Depois da fala, Guedes foi duramente criticado pelos senadores, que afirmaram que o orçamento “engessado” garantia que Bolsonaro não governasse apenas para seus pares. Enquanto a discussão crescia, a rachadura no teto já começava a vazar.