Em maio deste ano, em uma reunião de alinhamento, o presidente Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, se desentenderam sobre o teto de gastos, a Lei que, à falta de outra solução, impede que o Brasil descambe novamente para a irresponsabilidade fiscal. Bolsonaro, que enfrenta um derretimento da popularidade, precisava encontrar formas de alavancar seu capital político — e o dinheiro sempre foi combustível eficiente neste tipo de engrenagem. Durante os dois meses que se seguiram Guedes conseguiu desviar o assunto oferecendo recursos oriundos do aumento significativo da arrecadação neste ano. Mas o furo do teto voltou a rondar o Ministério da Economia nas últimas semanas. Os pré-candidatos à corrida eleitoral de 2022 Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT) novamente fizeram menções à revisão ou reversão integral da medida, gerando um forte incômodo no atual ocupante do Palácio do Planalto.

Para este ano, com o aumento da arrecadação, é possível que Guedes consiga atender as demandas do presidente com remanejamento de recursos. Na quarta-feira (21), por exemplo, Bolsonaro anunciou que todos os ministérios terão seus orçamentos descongelados. Em 22 de abril o governo havia publicado decreto formalizando contingenciamento de R$ 9,2 bilhões. Antes desse anúncio, o presidente já havia liberado os recursos da educação. Soltar as amarras do Orçamento deste ano deixa suspenso o problema da falta de recursos. Guedes agora já começa a fazer as contas para 2022. E vislumbra, aí sim, o problema.

Miguel Schincariol

“Nós vamos revogar este teto. O governo precisa ser parte da solução, não do problema” Luiz Inácio lula da silva PT

Segundo as projeções do governo, haverá um avanço estimado em R$ 105,2 bilhões nas despesas obrigatórias ano que vem, o que limita o espaço livre do governo para gastos em ano eleitoral. Por enquanto, o próprio governo prevê que a “folga” será de cerca de R$ 25 bilhões. Segundo Bolsonaro, o crescimento “assustador” da arrecadação visto até junho basta para sustentar o novo programa social (que deve consumir algo em torno de R$ 18, bilhões). Mas não se sabe de onde virão os recursos para o aumento de 5% prometido no salário do funcionalismo público (mais R$ 15 bilhões), além dos R$ 5 bilhões prometidos para destravar obras públicas. No Congresso Nacional, aliados do presidente seguem pressionando pela saída de Guedes, o que abriria espaço para mudança na Lei. Há algum tempo o ministro da Economia disse que preferia deixar o governo se a alternativa fosse guiar a nação por um caminho que ele não apoia.

DISCURSO PREPARADO Enquanto a pressão sobe em Brasília, em caravana pelo País, o ex-presidente Lula, que atualmente figura à frente de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto, já deixou claro mais de uma vez que, caso assuma novamente a presidência, vai revogar o teto. “Nós vamos revogar o teto de gastos, é importante todo eleitor saber”, disse. De acordo com o petista, houve a disseminação de um discurso em que todo recurso usado para o pobre é considerado gasto. “Neste País, lamentavelmente, é assim: quando você pega R$ 1 bilhão e dá para um rico é investimento, mas quando pega R$ 300 reais e dá para o pobre, é gasto”, disse.

E se esse discurso tem apelo com a população, os líderes do PT correm para tentar fazer com que o mercado também o aceite. Fontes ligadas ao ex-presidente disseram haver uma aproximação do partido com Bernard Appy (ex-secretário-executivo de Política Econômica do governo Lula) e Marcos Lisboa (ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda). Há ainda conversas mais tímidas com Murilo Portugal (ex-secretário executivo do Ministério da Fazenda), além de Henrique Meirelles, que foi presidente do Banco Central com Lula e hoje é secretário da Fazenda do Governo do Estado de São Paulo. Mesmo com esse flerte com o mercado, ainda há resistência dentro da cadeia produtiva sobre uma recondução de Lula à presidência. Para resolver isso, o PT irá propor um projeto de impulsão econômica que atenda empresários de todos os portes. “O governo precisa ser parte da solução. O governo que temos hoje é parte do problema. Ele se apequena diante de discussões que precisaria estar mediando”, disse Lula.

Pedro Ladeira

“Esse teto de gastos é uma aberração. Tem que acabar com essa loucura feita às pressas” Ciro Gomes PDT

A falta de um programa de geração de emprego e a redução dos investimentos em virtude do teto também devem ser argumentos usados por Ciro Gomes, do PDT. Se colocando como a “terceira via” entre Lula e Bolsonaro, Ciro critica o contingenciamento forçado desde sua criação, em 2016, no governo Michel Temer. “Bolsonaro fez uma portaria arrebentando o teto de gastos. Ou vocês acham que o Orçamento de guerra ano passado foi o quê?”. Para ele o teto sempre foi impraticável, e não é apenas pela pandemia. “Qual a literatura que sustenta essa medida? Teto de gastos é aberração”, disse. Segundo o pedetista, uma alternativa coerente é se instalar limites de endividamento. “O teto de gastos vai para onde? Para deprimir a taxa de investimento a zero. Isso tem um ‘trade off’ que acaba com a economia do país”, disse. Segundo a Lei, o teto tem validade por 20 anos, o que, segundo Ciro, irá prejudicar ainda mais a capacidade de crescimento do País. “Para se manter, a infraestrutura precisa gastar 2,5% do PIB, mas queremos gastar 0,75% com tudo. Tem que acabar com essa loucura, feita às pressas por uma elite que não entende nada”, disse.

Para sustentar seu discurso, Ciro, que também é economista, tem ao seu lado nomes de peso como Nelson Marconi, Mauro Benevides Filho e Paulo Rabello de Castro. O pedetista também confirmou ter conversas regulares (mas não necessariamente de políticas) com Bresser Pereira, Delfim Netto e Luiz Gonzaga Belluzzo.

OS DONOS DAS PEDRAS

Se o teto de gastos do governo parece de vidro, o que não faltam são pessoas prontas para atirar uma pedra — principalmente se for por benefício próprio. Em um espetáculo de falta de coerência com a realidade, o Congresso Nacional neste ano tem sido tudo, menos republicano. Donos de um Orçamento secreto, esbanjando emendas parlamentares e mantendo seus proventos intactos durante a pandemia, os deputados e senadores foram além e aprovaram no começo de julho um estrondoso fundo eleitoral de R$ 5,4 bilhões.

Apesar de o presidente Jair Bolsonaro já ter sinalizado um veto a essa determinação vinda do Legislativo (e indicar que liberação de R$ 2 bilhões para os pleitos de 2022), o esdrúxulo pedido em um ano de crise indica mais que uma fome insaciada por dinheiro: é a prova de que o Centrão não quer pouco, e seu apoio custará cada vez mais caro. Seja com R$ 1,9 bilhão escoado por emendas nas “transferências especiais” para suas bases eleitorais, ou com os R$ 15 bilhões de um Orçamento secreto que remonta os tempos da KGB, o Congresso está pronto para atirar a pedra no teto de vidro do Executivo. Dominado pelo Centrão, o governo sente agora os efeitos colaterais de prometer um governo isento de indicações políticas e ficar nas mãos do mais baixo clero do Congresso para evitar que a pedra do afastamento atinja o Palácio da Alvorada.