Sem conseguir driblar a penúria financeira, os governos estaduais ainda estão longe do fundo do poço e devem enfrentar deterioração “significativa” nas suas contas nos próximos anos, alerta o Tesouro Nacional. O crescimento acentuado de despesas obrigatórias, como salários de servidores, aposentadorias e pensões, vai drenar as receitas estaduais e prejudicar o funcionamento de serviços básicos que estão sob a responsabilidade dos Estados, como segurança e educação.

Ao todo, 17 Estados fecharam o ano passado com as despesas de pessoal acima do limite previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O número é quase o dobro de 2016, quando nove governos estaduais descumpriram a regra, que permite comprometer 60% da Receita Corrente Líquida (RCL) com a folha.

O risco é que um número cada vez maior de Estados não consiga cumprir suas obrigações e fique insolvente, o que poderia causar prejuízos à própria percepção de risco sobre o Brasil. “Se não forem revistos os parâmetros constitucionais atuais, há grande risco de ampliação das situações de insolvência nos próximos anos”, adverte o órgão.

A avaliação consta no relatório “Exposição da União à Insolvência dos Entes Subnacionais”, que lança o debate no período de transição para os novos governos estaduais, que assumirão esse desafio pelos próximos quatro anos.

O excesso de vinculação de receitas, o elevado endividamento e o rombo crescente na Previdência dos servidores são considerados pontos centrais a serem enfrentados para dar sustentabilidade financeira aos Estados, que nos últimos anos negociaram diferentes formas de socorro com a União para tentar minimizar seus problemas de caixa. O alerta do Tesouro é para o fato de que hoje há muitas amarras que impedem a redução das despesas e, no futuro, não haverá paliativos.

Mesmo que haja esforço de contenção de gastos pelas próximas gestões estaduais, a situação ainda será crítica porque o envelhecimento da população e o crescimento das aposentadorias elevarão as despesas com inativos de qualquer forma.

O Tesouro reconhece que as sucessivas negociações do governo federal para resgatar Estados em crise tornam “pouco crível” uma sinalização de que não haverá mais “salvamento” a quem se endividar de maneira insustentável ou adotar política de gastos irresponsável. Mas ressalta que tem buscado criar um arcabouço normativo para dar uma saída mais racional rumo ao equilíbrio nessas situações.

Uma dessas iniciativas foi a aprovação do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que abre a possibilidade de um plano de resgate para Estados que têm dívidas com a União e já tem a adesão do Rio de Janeiro. Ainda não há, porém, nenhum mecanismo desenhado para lidar com situações em que um governo estadual sem dívidas com o governo federal se torne insolvente.

O Ministério da Fazenda também tem adotado medidas para tentar pôr freio no endividamento dos governos regionais e revogou a portaria que permitia a concessão de garantia de crédito a Estados em péssimas condições financeiras.

Além disso, o Senado Federal aprovou a instituição de limites anuais para a concessão de garantias pela União. O Conselho Monetário Nacional (CNM), por sua vez, passou a aprovar os limites anuais para operações internas com e sem garantia da União.

Causas

A crise nos Estados tem uma de suas raízes na política de crédito fácil implementada pelo governo federal em gestões anteriores e que irrigou os Estados com mais de R$ 140 bilhões desde 2012. O dinheiro, que deveria ter financiado a expansão dos investimentos, acabou servindo para que os governadores aplicassem em obras já previstas, deixando os recursos próprios do Estado para bancar aumentos salariais robustos, principalmente em época de eleição.

De 2005 a 2016, o gasto per capita com servidores estaduais teve alta real média de 57%, sendo que em cinco Estado o avanço foi de mais de 80% acima da inflação. O resultado que se vê agora é o endividamento elevado de alguns Estados e uma folha de pessoal crescente e incompatível com seu volume normal de receitas.

“Tais números revelam uma situação preocupante devido à rigidez nos gastos com pessoal, dado que há inúmeros mecanismos legais que impedem a redução de tais despesas, como a irredutibilidade dos vencimentos, as regras de acesso à aposentadoria, adicionais por tempo de serviço e a falta de contribuição de parte dos inativos cujos proventos são menores que o teto do INSS”, diz o Tesouro.

A reforma da Previdência em tramitação no Congresso Nacional prevê mudanças nas regras de aposentadoria e pensão de servidores estaduais – cada Estado poderia fazer sua reforma em até seis meses, ou passaria a seguir as normas aprovadas para a União. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, já deu indicações de que pode apoiar a votação desse texto.

Para o Tesouro, a solução envolve não só a reforma, mas a instituição de regimes de previdência complementar em todos os Estados. Dessa maneira, o servidor só tem direito a benefício imitado ao teto do INSS (hoje em R$ 5.645,80), e quem quiser receber mais precisa contribuir para o fundo complementar.

No entanto, apenas 14 Estados e o Distrito Federal criaram esses fundos, muitos recentemente. O alívio esperado às contas estaduais só virá no médio prazo e, até lá, bilhões terão que ser repassados para cobrir rombos previdenciários. Só em 2017, o déficit na Previdência dos Estados foi de R$ 81,9 bilhões.

Alerta sobre garantias

A deterioração significativa que deve ocorrer nas finanças dos Estados nos próximos anos pode levar prejuízo a bancos públicos federais que aceitaram receitas futuras desses entes como garantia de operações de crédito. Relatório do Tesouro Nacional alerta que as transferências via Fundo de Participação dos Estados (FPE), geralmente aceitas como fonte líquida e certa de receitas em caso de inadimplência, podem não ser suficientes para cobrir o calote. O prejuízo pode acabar batendo nos cofres da União, acionista dos bancos, ou ainda onerar empresas que firmaram parcerias público-privadas (PPPs) com esses Estados.

O problema é que não existe hoje um controle centralizado para saber quanto do FPE foi prometido como garantia aos bancos ou como contragarantia em operações que a União entra como fiadora. Cada órgão ou banco faz seu próprio monitoramento. O mesmo raciocínio vale no caso das prefeituras, que usam o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) para garantir operações de crédito. Além disso, o empenho dessas receitas está sendo questionado legalmente pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que passou a investigar o caso após reportagem do Broadcast (sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado) no início do ano.

“Nem a União, no caso o Tesouro Nacional, nem os bancos ofertantes desse tipo de operação têm, atualmente, uma real dimensão do nível de alavancagem das receitas oferecidas em garantia ou contragarantia com que trabalham os entes subnacionais”, admite o relatório.

Na prática, a mesma receita pode estar servindo de lastro para mais de uma dívida, numa postura considerada imprudente pelo governo federal. Em uma comparação, é como oferecer o mesmo carro como garantia a vários empréstimos. Se o tomador deixa de pagar as parcelas junto a todas as instituições, o carro não será suficiente para cobrir todos os prejuízos. Aí começa a disputa para ver quem recebe primeiro.

O problema está no colo principalmente dos bancos públicos federais como Caixa, BNDES e Banco do Brasil, que detêm R$ 38 bilhões dos R$ 42 bilhões do saldo de créditos sem garantia da União. Mas também pode recair sobre as companhias que firmaram PPPs e podem ser chamadas a honrar o débito deixado pela falta das receitas empenhadas pelo Estado como garantia.

“Não há dúvidas de que, sobretudo em contexto de grave crise fiscal e de liquidez pelos quais passam os entes subnacionais, tais recursos podem ser insuficientes para cobrir eventos de default generalizado e sistêmico, como, por exemplo, aquele que foi vivenciado recentemente pelo Estado do Rio de Janeiro”, adverte o Tesouro. Se os bancos federais não conseguem executar as garantias, no fundo quem assume o impacto é a União.

“Eles (os bancos) precisarão arcar com o prejuízo, o qual será, certamente, repassado ao Tesouro Nacional por via da redução de dividendos ou necessidade de aporte de capital”, aponta o relatório.

O tema tem chamado a atenção dos técnicos do governo porque nos últimos anos houve aceleração da concessão de empréstimos sem garantia da União, ou seja, diretamente pelo banco ao governo estadual ou municipal. Essa foi a válvula de escape encontrada por políticos que queriam turbinar o crédito nos Estados depois que o Ministério da Fazenda apertou as condições para ser fiador dessas operações.

O montante dos empréstimos sem aval federal ultrapassou R$ 18 bilhões em 2014, ano eleitoral, caiu a R$ 4 bilhões em 2015 e 2016 e dobrou para quase R$ 8 bilhões no ano passado, período turbulento em que o presidente Michel Temer, alvo de denúncias, precisava angariar apoio no Congresso Nacional. Recentemente, o Conselho Monetário Nacional (CMN) remanejou limites para permitir a contratação de mais R$ 4 bilhões em empréstimos sem garantia da União em 2018, uma vez que Estados e municípios já haviam consumido o teto estipulado anteriormente de R$ 7 bilhões.

O Tesouro detém a prioridade de pedir reembolso junto ao FPE em caso de calote de algum Estado. É por isso que, diante de um nível elevado de comprometimento, as instituições financeiras vão parar no fim da fila da concorrência e podem ficar meses sem receber nada, até que haja disponibilidade no fundo para ressarcir esse débito.

Depois que o Broadcast revelou no início do ano esse movimento e também a aceitação do FPE como garantia, o Banco Central editou uma norma que passou a exigir mais capital dos bancos para fazer frente a esse tipo de empréstimo. A avaliação no governo é de que a medida desestimula novas concessões, mas não resolve o problema do uso do mesmo FPE como garantia para diferentes operações.

Embora tenha grau menor de dependência em relação ao fundo de participação, Minas Gerais prevê para 2018 o desembolso de mais de R$ 7 bilhões em serviço da dívida. Já as estimativas oficiais do FPE mostram que o governo mineiro deve receber pouco mais de R$ 3 bilhões neste ano.

Alagoas, que obteve recentemente o sinal verde para contratar R$ 620,7 milhões em crédito sem garantia da União, já compromete 20% do FPE previsto para 2018 apenas com serviço da dívida. O fundo representa hoje mais da metade de suas receitas correntes.

O Tesouro e o Banco Central agora trabalham para elaborar uma forma de promover a centralização das informações sobre garantias e contragarantias. A ideia é que os bancos informem tudo que receberem de Estados e municípios como garantia e possam depois consultar os dados prestados pelo Tesouro. A avaliação é de que as instituições financeiras não poderão negar essas informações, dado o risco sistêmico envolvido.