Uma das mais antigas fake news da história nos conta que o imperador Nero mandou incendiar Roma no ano 64 d.C. e tocou sua lira enquanto observava as labaredas. Não é verdade. Nero nem sequer estava na cidade no dia 18 de julho daquele ano, quando o incêndio começou. Durou seis dias. Quando terminou, dez dos 14 bairros romanos haviam sido destruídos. As causas mais prováveis foram o calor, as condições precárias de moradia e o abastecimento ineficiente de água, e não um desvario do imperador. No entanto, a narrativa de um governante festejando de maneira ensandecida enquanto seus súditos perecem em uma tragédia provocada por ele segue poderosa no imaginário político. Vale para o Brasil do início de 2022. Basta trocar um incêndio por várias inundações e substituir a lira por um rap dançado a bordo de uma lancha para encaixar Jair Bolsonaro na cena. Com uma diferença. Credita-se ao romano a destruição de uma única cidade. Já o presidente, que gozava férias na praia e se engasgava com camarões enquanto uma em cada dez cidades brasileiras permanecia em situação de emergência, é o responsável pela devastação de um país inteiro. Seu legado será uma terra calcinada em termos econômicos e sociais.

Em Roma, Nero tocaria lira. No Brasil, Bolsonaro toca o terror na economia. Suas falas e gestos pioram expectativas, tornam empresários e investidores mais arredios e empobrecem todos os brasileiros. O ato mais recente dessa jornada devastadora foi divulgado na manhã da quinta-feira (13). Em um decreto, o presidente concedeu mais poderes ao ministério da Casa Civil para executar o Orçamento. Na prática, isso reduz a autonomia do Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, que agora vai precisar do aval da Casa Civil para criar ou remanejar despesas. Até a quinta-feira, a Junta de Execução Orçamentária — composta pelos ministérios da Casa Civil e da Economia — era encarregada de definir os limites de dotação e movimentação do orçamento, além de autorizar os remanejamentos. Porém, a execução era exclusiva do Ministério da Economia.

Na quinta-feira (13), Bolsonaro concedeu mais poderes ao ministério da Casa Civil para executar o Orçamento. Isso reduz a autonomia do Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, para remanejar despesas. (Crédito:Evaristo Sa/AFP)

Em mais uma das milhares de práticas desconhecidas de Brasília, em todo começo de ano o governo federal edita um decreto delegando ao Ministério da Economia a competência para criar créditos suplementares ou transferir dotações orçamentárias. Pela primeira vez o texto traz um acréscimo, determinando que os atos estão condicionados “à manifestação prévia favorável do Ministro de Estado Chefe da Casa Civil”. Não custa lembrar que o titular da pasta, o mais próximo que o Executivo brasileiro tem de um primeiro-ministro, é o senador licenciado Ciro Nogueira (PP-PI), um dos expoentes do Centrão. A agremiação de políticos de partidos de centro não é famosa por sua aderência à austeridade fiscal e a relações republicanas na gestão da coisa pública.

A desidratação de Guedes é a cena mais recente da longa narrativa que está deixando a economia em ruínas. É fácil entender o porquê. As decisões econômicas são baseadas em expectativas, e elas são ruins. O cenário é tão grave que confunde até mesmo o decano dos economistas brasileiros, o ex-ministro Antônio Delfim Netto. Aos 93 anos, o arguto observador que já testemunhou dezenas de crises, confessa estar desorientado. “Diante de tudo o que está acontecendo, a bola de cristal da minha bruxa está embaçada”, disse ele. “Mas intuo uma redução ainda maior do crescimento em 2022 e uma grande confusão em 2023.”

Dezenas de indicadores econômicos comprovam a catástrofe. Fiquemos com o mais importante deles, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que indica a fatia da riqueza nacional que cabe a cada cidadão. O dado mais recente disponível é o de 2020, em que o PIB per capita era de US$ 6,82 mil, queda de 39,8% ante os US$ 11,34 mil de 2010. E as estimativas são de que a alta do dólar e o desempenho pífio dos negócios reduzam essa cifra para US$ 6,51 mil em 2021, uma queda de quase 50% na década.

Eduardo Knapp

“Diante de tudo o que está acontecendo, a bola de cristal da minha bruxa está embaçada. Mas intuo uma redução ainda maior do crescimento em 2022 e uma grande confusão em 2023” Antônio Delfim Netto.

O quadro é agravado pela alta da inflação. Na terça-feira (11), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmou o que qualquer pessoa que frequente supermercados já sabe: os preços saíram do controle. A inflação medida pelo IPCA em 2021 atingiu 10,06%. Foi a maior desde 2015 e muito acima dos 5,25% do teto da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Pela lei que estabeleceu o regime de metas para a inflação, em 1999, quando a taxa supera o que foi planejado cabe ao presidente do Banco Central (BC) enviar uma carta ao ministro da Economia, que preside o CMN, explicando os motivos do descumprimento. Foi o que Roberto Campos Neto fez já no mesmo dia. A carta endereçada a Paulo Guedes tem 14 páginas, traz alguns fatos já conhecidos e uma sutil, porém firme, atribuição de responsabilidades. A menor parte da culpa é do cenário internacional. A maior é 100% brasileira: a irresponsabilidade fiscal do Executivo e de boa parte dos congressistas (leia no quadro).

Agarrado à lira verbal que toca incessantemente, Bolsonaro atribuiu a culpa do “incêndio” nos preços às vítimas carbonizadas pela tragédia. No dia do anúncio do IPCA, ele responsabilizou as medidas restritivas. “Está o mundo todo com esse problema da inflação. Você lembra do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois’? Estamos vendo a economia. O cara ficou em casa, apoiou, e agora quer me culpar pela inflação”, afirmou o presidente.

CRESCIMENTO ZERO O cenário traz pessimismo ao economista José Roberto Mendonça de Barros. Ele disse esperar um crescimento próximo de zero neste ano. As razões são conhecidas. A inflação eleva os juros, piora as condições do crédito e deverá elevar a inadimplência. “Mesmo que a inflação caia para 5%, ela ainda é bastante alta. E no plano político há uma enorme incerteza em torno da sucessão”, disse ele. “Vai ser muito difícil a gente sair disso.”

Reinaldo Canato

“Em 2022, o País vai andar de lado, pois a inflação alta, o real hiperdesvalorizado e a insegurança na política fiscal vão adiar o crescimento” Marcos Lisboa, presidente do Insper.

Para o economista e presidente do Insper Marcos Lisboa a avaliação é semelhante. Segundo ele, o governo Bolsonaro não soube tirar o País do ciclo de mediocridade econômica dos últimos 30 anos, e agravou muitos dos problemas que já existiam. “Temos um Estado capturado por interesses pessoais e sem interesse em olhar para o desenvolvimento”, disse ele. “Em 2022, o País vai andar de lado, pois a inflação alta, o real hiperdesvalorizado e a insegurança na política fiscal vão adiar o crescimento.”

Segundo Lisboa, em 2023 a situação será pior, pois a “criatividade tributária” vai gerar um pesadelo para a economia. “O calote nos precatórios e o aumento da pressão de gastos, que será muito forte nos próximos anos, vai causar um grande problema para o novo governo, seja qual for.” E a disputa eleitoral virá na pior hora possível. Eleições são momentos de incerteza e o de 2022 será um caso grave. Uma pesquisa divulgada na quarta-feira (12) pela Genial/Quaest mostra um pleito polarizado. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 45% das intenções de voto e Jair Bolsonaro ainda é
o preferido por 23% dos eleitores. Segundo Mendonça de Barros, uma reeleição de Bolsonaro representaria a continuidade do desastre. “O governo vai repetir tudo o que foi malfeito ou o que não foi feito nos últimos três anos”, disse. E Lula, favorito nas pesquisas, tem sido econômico nas declarações, exatamente para não ameaçar seu favoritismo. “Não dá para saber o que ele pretende fazer se for eleito”.

Seja qual for a narrativa capaz de empolgar o eleitor, o certo é que antes de a campanha ter início haverá menos investimentos, menos empresas e menos pessoas ocupadas. Segundo o IBGE, o desemprego nos trimestre findo em outubro do ano passado, dado mais recente disponível, era de 12,1%. Está abaixo dos 14,6% do mesmo período de 2020, mas ainda é um dos resultados mais altos desde o início da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que começou a ser realizada em 2003. E quem trabalha está em uma situação pior do que no passado. A taxa de informalidade subiu para 40,7%, ante 38,4% no mesmo período de 2020. Em outubro do ano passado, 38,2 milhões de trabalhadores exerciam suas atividades de maneira informal, sem direito a benefícios e afetando a arrecadação de impostos.

MASAO GOTO

“A ajuda que a inflação trouxe às contas públicas em 2021 deve se diluir em 2022” Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda e Diretor de estratégia do Banco Safra.

PROPOSTAS Isso melhora após a eleição? Segundo o ex- -ministro da Fazenda e diretor de estratégia econômica e relações com mercados no banco Safra, Joaquim Levy, o maior desafio para 2023 será a escolha fiscal do novo governo, devido à incerteza legada pelo orçamento federal de 2022. “A ajuda que a inflação trouxe às contas públicas em 2021 deve se diluir em 2022”, disse Levy. Como resultado, ficará mais caro para o governo financiar a dívida pública, outro fator a pressionar para cima o custo do crédito.

Sem certezas quanto a uma melhora do cenário econômico ainda em 2022 os candidatos à presidência aproveitam o degradado quadro atual para apresentar suas promessas. Lula, aconselhado pelo ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e por Aloizio Mercadante, dentre outros nomes ligados ao PT, já anunciou sua intenção de revisar a reforma trabalhista e defende aumentar o imposto para os 1% mais ricos. É contrário às privatizações de estatais e à paridade de preços de combustíveis com o mercado internacional. Já o governador paulista João Doria, que tem o ex-ministro Henrique Meirelles como secretário da Fazenda e porta-voz para a economia, é a favor de privatizar tanto a Petrobras quanto o Banco do Brasil. Quer manter a reforma trabalhista e o teto de gastos.

Entre um e outro, Ciro Gomes defende tirar os investimentos públicos do teto de gastos, privatizar estatais deficitárias e taxar dividendos. Ex-ministro da Justiça no governo Bolsonaro, o atual candidato Sergio Moro é aconselhado por Affonso Celso Pastore, que presidiu o Banco Central, e por Marcos Cintra, ex-secretário da Receita Federal e padroeiro do imposto único, que deu origem à CPMF. Enquanto estuda um novo modelo para o teto de gastos, Moro não descarta aumentar a alíquota do imposto sobre herança. O problema é que, até agora, todos os candidatos oferecem pontos de vista ligados a seus programas partidários, e não propostas para reduzir a inflação e o desemprego de maneira estrutural. Mesmo se queixando do embaçamento de sua bola de cristal, Delfim Netto mantém a clarividência habitual. “O governo Bolsonaro é medíocre e já acabou. Agora, precisamos de uma boa reforma administrativa para restabelecer a ordem na economia.”

CARTA NA MESA
As explicações do Banco Central
para o estouro da meta de inflação

ROBERTO CAMPOS NETO sem responsabilidade fiscal não é possível segurar a inflação. (Crédito:Sérgio Lima )

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central (BC) teve de cumprir uma obrigação desagradável na terça-feira (11), quando foi divulgado o IPCA de dezembro. Confirmando os prognósticos, a inflação de 2021 foi de 10,06% — quase o dobro do teto da meta de inflação, que era de 5,25%. Nesses casos, a lei manda que o BC envie uma carta aberta ao ministro da Economia, presidente do Conselho Monetário Nacional (CMN). O CMN estabelece a meta e o BC é o encarregado de cumpri-la. Como não o fez, preparou um documento de 14 páginas, com muitos gráficos e tabelas. Ele atribui a alta da inflação ao aumento dos preços internacionais, incluindo commodities, e às secas. Mas coloca boa parte da culpa no Executivo e no Legislativo, ao frisar que o risco de irresponsabilidade fiscal leva investidores a exigir mais rentabilidade para alocar recursos no Brasil. Isso eleva os juros, pressiona o dólar e, claro, tira a inflação dos trilhos. A seguir, alguns dos principais tópicos do documento:

As políticas expansionistas dos países desenvolvidos “geraram excesso de demanda em relação à oferta de curto prazo de diversos bens, causando um desequilíbrio que (…) foi exacerbado por falta de mão-de-obra, por problemas logísticos e por gargalos de produção.

A inflação de serviços foi afetada pela pandemia devido ao distanciamento social, que reduziu a demanda por serviços e causou cinco deflações mensais em 2020. Entretanto, à medida que o distanciamento social se reduziu devido à vacinação, a inflação de serviços se acelerou.

Questionamentos em relação ao futuro do arcabouço fiscal resultam em aumento dos prêmios de risco e elevam o risco de desancoragem das expectativas de inflação. Isso eleva a probabilidade de cenários que considerem taxas de juros mais elevadas.

O Copom reitera que o processo de reformas e ajustes necessários na economia brasileira segue sendo essencial para o crescimento econômico sustentável. Eventual esmorecimento no esforço de reformas estruturais e alterações de caráter permanente no processo de ajuste das contas públicas podem elevar a taxa de juros estrutural da economia.