A morte corre veloz e implacável nas redes de energia das empresas do setor elétrico privatizadas pelo governo. Desde que a desestatização foi iniciada há cerca de cinco anos, o número de vítimas fatais entre funcionários cresceu dramaticamente. Para investigar as razões de tantas mortes, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o Ministério do Trabalho e as entidades sindicais se mobilizaram. A preocupação procede. Em empresas como Companhia Energética do Ceará (Coelce), Espírito Santo Centrais Elétricas S/A (Escelsa), Light e Empresa Energética de Sergipe (Energipe), os acidentes fatais de trabalhadores por choque elétrico e queda de postes chegam a mais de 65, número muito superior ao registrado antes da mudança no perfil de atuação do segmento. ?Falta de treinamento e excesso de trabalho estão entre as maiores causas desses acidentes?, diz José Mário Abdo, diretor-presidente da Aneel. As conseqüências dessa terrível situação começaram a ser investigadas. Primeiro alvo: a Coelce. No início de setembro, Abdo determinou a intervenção pesada de fiscais e técnicos das instalações da companhia cearense. ?Vidas humanas são inegociáveis?, diz o executivo. Por conta da gravidade dos problemas levantados, ele abriu fogo contra as vencedoras dessa privatização. Endesa (Espanha), Cerj e as chilenas Enersis e Chilectra podem perder, pela primeira vez na história brasileira, a concessão e o direito de participar de qualquer outro leilão na área de energia. A Coelce passou às mãos privadas, em 1998, por quase R$ 1 bilhão. ?Não há meio termo: ou eles resolvem todos os problemas num curto espaço de tempo ou haverá cassação?, ressalta. Para quem esperava o característico estilo burocrático das agências reguladoras, a Aneel revelou-se atuante.

O presidente Abdo começou a fiscalizar a Coelce em setembro de 1998 e não gostou do que viu. Impôs multas de quase R$ 7 milhões por inúmeras irregularidades ? falta de abastecimento, serviços fora do prazo, oscilações da tensão elétrica, cobranças a mais em contas de luz e atendimento inadequado aos consumidores. Mas as medidas cobradas pela agência não foram adotadas. Resultado: uma devassa nos escritórios da Coelce. O impacto da atuação da Aneel foi imediato. De saída, o Conselho de Administração derrubou o atual presidente Carlos Eduardo Carvalho Alves, que será substituído, ainda neste mês, pelo espanhol Manuel Montero Camacho. Até o final do mês, a Aneel definirá o destino dos controladores da Coelce. ?Relatório de Comunicação de Falhas e Transgressões ao Contrato de Concessão?, produzido pela Aneel e obtido com exclusividade pela DINHEIRO, mostra que o governo não poupará medidas para punir os desmandos. ?Os dados sobre acidentes envolvendo empregados próprios e terceirizados da Coelce são alarmantes, particularmente aqueles relativos a acidentes fatais?. De acordo com a agência, os resultados financeiros da empresa vêm aumentando ano a ano, em detrimento da segurança no trabalho. O capital próprio da Coelce subiu de R$ 446,2 milhões em 1998 para R$ 470 milhões em março de 2000. Em 1999, o lucro apresentado foi de R$ 74,9 milhões, contra R$ 28 milhões no ano anterior.

Com a obsessiva busca por resultados financeiros e corte de custos, a Coelce optou até pela terceirização de serviços como os de manutenção, que exigem maior qualificação e apresentam um nível de risco muito elevado. Nos anos anteriores à privatização, ocorrida em 1998, raramente havia um acidente de trabalho fatal. Daquele ano em diante, a escalada da morte não deu tréguas: 13 funcionários morreram por choque elétrico, dois por acidentes de carro e moto (a serviço) e outros dois foram esmagados por postes. E pior: a falta de manutenção adequada das redes está arrancando a vida dos próprios moradores. Foi o que aconteceu no dia 20 de agosto, quando a funcionária da Prefeitura de Fortaleza Idalba Maria Rocha morreu vítima de sobrecarga de uma rede. A tensão disparou de 220 volts para mais de 14 mil volts no exato momento em que Idalba tentava desligar a chave geral da casa. O Ministério do Trabalho está acompanhando a situação. O diretor da Delegacia do Trabalho do Ceará, Carlos Pimentel de Matos Júnior, promete: ?Vamos apurar todas as causas de acidentes e tomar as medidas necessárias?. Até o momento, o órgão apreendeu equipamentos irregulares e interditou instalações elétricas em mau estado. Procurados pela DINHEIRO, os executivos da Coelce preferiram o silêncio.

As famílias atingidas processam judicialmente a Coelce. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Paulo Quezado, está defendendo os familiares do funcionário Murilo Parente de Menezes Júnior, que se matou no dia 3 de setembro de 1998 com um tiro na cabeça nas dependências da empresa. Deixou um bilhete: ?O motivo da minha atitude está relacionado com a instabilidade existente face à nova estrutura da empresa?. A ação, julgada até o final do mês, pede R$ 2 milhões de indenização. O departamento jurídico do Sindicato dos Eletricitários do Ceará, assumiu a defesa dos empregados vítimas de acidentes fatais. ?Pedimos cem salários de indenização para cada caso?, conta a advogada Luíza Cavalcanti. ?Nunca vi situação tão deprimente?.

A morte também persegue o Espírito Santo. Privatizada em julho de 1995, a Escelsa ? controlada pela GTD Participações (consórcio formado por 11 fundos de pensão) e pela portuguesa EDP ? apresenta um quadro tingido de óbitos. Foram nove mortes em 1995, quatro em 1996, uma em 1998 e quatro no ano passado. Os dados de 2000 ainda não estão disponíveis. ?A empresa demitiu 34% do quadro de pessoal assim que foi privatizada, terceirizou serviços técnicos e desativou a área de treinamento?, resalta Sérgio Carlos da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Energéticas do Espírito Santo. Em nota oficial, a Escelsa é lacônica: ?A empresa está com um dos menores índices de acidentes de trabalho entre as do setor elétrico?. Na Light, a situação é igualmente negra. Em 1996, quando a companhia foi privatizada, o número saltou para nove óbitos. Em 1997, foram dois; 1998, 11; e, em 1999, cinco. Para tentar contornar a situação, a Light acatou um velho pedido dos trabalhadores: reinstalar o comitê de prevenção, desativado desde que as norte-americanas AES e Reliant, a francesa EDF e a CSN assumiram a companhia. ?Estamos reformulando os contratos de terceiros?, garante Edézio Oliveira, diretor-executivo da Light. Em Sergipe, o cenário se repete. De 1998 para cá, três funcionários perderam a vida em acidentes de trabalho. Para os empregados dessas companhias, a situação se assemelha à de épocas tristes da história da humanidade. ?Trabalhamos como num campo de concentração?, diz José Venerando, do Sindicato dos Eletricitários do Ceará.