Por que motivo algumas pessoas que, apesar de terem alta exposição ao vírus da Covid-19, nunca estiveram infectados? Que mistério interno têm estes super-resistentes ao SARS-CoV-2 e o que escondem?

As respostas a esse fator desconhecido que a comunidade científica internacional está considerando são múltiplas e parecem envolver a imunidade individual, mas principalmente a genética de cada pessoa – cujas peculiaridades atuariam como um escudo contra o vírus, dando ao organismo um estatuto mais elevado de superimunidade.

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Num artigo publicado na ‘Nature Immunology’, o imunologista e pediatra francês Jean-Laurent Casanova, diretor do laboratório compartilhado pela Universidade Rockefeller, de Nova Iorque, e o Hospital Infantil Necker, de Paris, destacou que o “panorama genético de um indivíduo em particular e de uma população em geral parece ter um papel fundamental na configuração da dinâmica da Covid-19”, propondo “até três portas genéticas potencialmente importantes para a infecção e que poderiam explicar, pelo menos em parte, as discrepâncias na sua disseminação, gravidade ou mortalidade” – em concreto, as alterações genéticas que reduzem um tipo de proteínas envolvidas na imunidade e estão associadas a doenças virais graves.

Essa e outras pesquisas justificaram a criação e desenvolvimento, em março de 2020 e impulsionado por geneticistas e imunologistas, do Consórcio Internacional COVIDHGE (COVID Human Genetic Effort), liderado por Casanova, cujo primeiro projeto foi especificar como a genética poderia ajudar a entender casos extremos de gravidade: jovens sem comorbilidades que morreram ou, no melhor dos casos, necessitaram de assistência em unidades de cuidados intensivos com necessidade de ventilação mecânica assistida.

A hipótese inicial, posteriormente confirmada em várias pesquisas, é que até 5% dos casos graves eram devidos a mutações nos genes das proteínas, segundo um estudo da ‘Science’. Outros 10% foram associados à presença de autoanticorpos contra algumas proteínas, a linha de defesa sem reação ou por mutações genéticas ou por bloqueios pelos próprios anticorpos, indicaram dados de outro estudo.

Esses resultados esclarecedores constituem um novo ponto de partida para os pesquisadores que compõem este consórcio internacional. A genética também pode esclarecer por que existem pessoas super-resistentes ao SARS-CoV-2? O consórcio responsável pela pesquisa, que representa mais de 40 centros internacionais, recrutaram mil voluntários e esperam chegar a mais de 5 mil: homens e mulheres com mais de 18 anos, nos quais não há vestígios de SARS-CoV-2 nas suas células. São pessoas que tiveram exposição de risco no ambiente doméstico ou profissional mas que não tiveram qualquer infecção ativa detectada em algum momento durante a pandemia. Foi descartada a existência da Covid-19 através de um teste PCR negativo e apresentaram anticorpos negativos nas quatro semanas seguintes.

Este ensaio clínico, cujas primeiras conclusões poderão ser obtidas nos próximos seis meses, é que são recolhidos dados de diferentes populações e grupos étnicos que “podem ser geneticamente dependentes de uma via ou de outra e assim oferecer dados esclarecedores”, explicou a geneticista espanhola Aurora Pujol, não apenas pela percentagem global de pessoas super-resistentes ao coronavírus mas, e mais importante, sobre os mecanismos e vias moleculares envolvidas neste fenómeno. Foram também deduzidos polimorfismos genéticos, que influenciam, embora não determinem, semelhanças aos detetados nos casos grades.

Segundo Jesús Troya, especialista que verificou a presença de autoanticorpos neutralizantes para interferon (grupo de proteínas) em pacientes com pneumonia grave pela Covid-19 num estudo publicado no ‘Clinical Journal of Immunology’, uma certa percentagem da população é refratária ao desenvolvimento da infecção.

Para tentar explicar por que algumas pessoas são resistentes, Pujol e Troya usam o exemplo da chave e da fechadura – se quiser abrir a fechadura da porta do seu vizinho com a sua chave de casa, ela não abre. Cada chave precisa da sua porta. Segundo Pujol, especialista em neurologia, doenças raras e sistema nervoso, “o vírus, quando tenta juntar as células para invadir, tem de entrar por uma porta e acontece que, no caso dos resistentes, a fechadura dessa porta está estragada. A chave que o vírus usa para penetrar na grande maioria das pessoas estragou as fechaduras dos resistentes.”

Esta é a primeira hipótese do trabalho: as fechaduras da porta de entrada são alteradas, a porta é blindada e o vírus não pode entrar. “Entender como essa blindagem funciona é fundamental porque, a partir desse entendimento, poderemos projetar medicamentos que simulem essa blindagem modificada que impede que o vírus de penetrar nas células”, considerou Pujol, que não hesitou em ressaltar que a genómica é essencial para revelar este mistério.