Mesmo com todos os complexos problemas estruturais, sociais e educacionais que permeiam a América Latina, o Brasil e outros países da região são o principal polo de formação das próximas gerações de talentos a serviço da Inteligência Artificial (IA) para o mundo. Esse é o retrato estampado em artigo assinado por Marco Stefanini, fundador e CEO global da empresa brasileira de tecnologia que leva seu sobrenome, apresentado no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, no mês passado. A visão sobre o cenário atual e futuro de um setor que cresce a um ritmo de dois dígitos – invejável à maioria das outras áreas da cadeia produtiva do País – é de alguém considerado com experiência, atitude empreendedora e coragem para enfrentar as mudanças que o mundo moderno exige.

A trajetória de Stefanini, de fato, explica o respeito dedicado ao seu artigo. Ele abriu sua empresa em 1987, quando traçava sozinho, em um quartinho de seu apartamento, o planejamento de suas aulas e consultorias sobre as novas tecnologias da época, baseadas no mainframe, computador de grande porte para processamento de enorme volume de dados. No Brasil, passou por grandes crises, no começo e no fim da década de 1990, na recessão do final dos anos 2000 e na atual. Em 32 anos de atuação, nunca fechou no vermelho. Pelo contrário. Atualizou processos, cresceu e hoje está presente em 41 países – ou 21% do território global –, sendo a quinta empresa brasileira mais internacionalizada.

Marco Stefanini é a inteligência real de um time formado por 25 mil funcionários ao redor do planeta, 13 mil deles estabelecidos em terras tupiniquins. Com essa bagagem, o empresário paulista projeta a América Latina como o local onde surgirão os profissionais que irão atender às demais regionais e de outros continentes no setor de Inteligência Artificial. A análise é de que a África está muito atrasada em desenvolvimento. A Ásia está formando em pleno vapor. A Europa e os Estados Unidos estão exauridos. “A América Latina é o último grande pool de talentos virgens, com relativo conhecimento para desenvolver. Esse é um posicionamento estratégico”, afirma Stefanini. “Esse momento único oferece uma oportunidade histórica para a América Latina se tornar um líder global de desenvolvimento e entrega de tecnologia de Inteligência Artificial”.

Essa conjuntura está muito bem delineada, mas tem de ser divulgada para que haja investimento e os diamantes sejam lapidados. A Stefanini tem feito sua parte, segundo o CEO. “Como empresa de tecnologia, temos de apoiar isso. Sempre que temos a chance de vender o Brasil ou se posicionar, é oportunidade única”, diz. Para o executivo, o crescimento desse setor vai gerar a produtividade e o valor agregado necessários para mudar o Brasil de patamar.

Ele destaca que, para isso, tem de haver uma melhor percepção de governo, instituições e empresas para aproveitar o momento positivo e avançar. “É decisão do País, que tem um potencial enorme. Sempre acreditei que o perfil do profissional do Brasil é acima da média.” Uma das cobranças que Stefanini faz é pela mudança do formato de investimento em educação. O Brasil tem grandes atrativos para se desenvolver ainda mais e se consolidar como referência na área digital, mas a política educacional equivocada pode comprometer esse processo. O País tem um grande mercado a ser explorado, com 2010 milhões de habitantes, população formada por pessoas abertas a novidades, com o setor tecnológico bem constituído, apesar de carecer de avanços em educação.

“DISTRAÇÕES” Para Stefanini, o sistema brasileiro teria de ser baseado no STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics). “São nossas ciências exatas. Só 3% dos brasileiros estudam esse modelo. A maioria dos estudos está ligada ao Direito e à Administração. E isso é uma questão histórica, não é de agora”, salienta o empresário, ao apontar ainda as “distrações” do mercado nacional que deixam o ambiente hostil ao empreendedor, como altas taxas de juros, burocracia e instabilidade política e jurídica. “Por isso, eu gosto da atual equipe econômica do governo federal, que está focada no que realmente importa: a liberdade econômica e o combate aos juros”, completa.

Para solucionar parte do problema, segundo ele, seria necessário aproximar a academia (universidades) do mercado (empresas) para alinhar a formação de mão de obra à demanda — o que hoje raramente acontece. E, claro, aplicação de recursos em educação básica. “As discussões que vejo sempre giram em torno de quanto é investido em educação, se é muito ou é pouco. Isso me irrita. Mais do que simplesmente colocar o dinheiro, é importante saber como dar a utilidade correta a esse dinheiro. Não acho que o Brasil investe pouco em educação. Na verdade, o País investe mal, joga dinheiro fora”.

DESENVOLVIMENO DIGITAL Sobre esse assunto, Marco Stefanini é admirador confesso do posicionamento do presidente da França, Emmanuel Macron. Ano passado, o brasileiro esteve em evento no qual o líder francês fez uma explanação para empresários. “Macron dedicou cerca de 80% do tempo para falar sobre ações de transformação digital e inteligência artificial”, diz o executivo. “Ele é o mais preparado entre os líderes mundiais em cultura digital”, afirma Stefanini, que esteve sentado à mesa do ministro de Educação da França, Jean-Michel Blanquer. No bate-papo durante o jantar, o empresário paulista fez uma pergunta inevitável ao ministro: o que a França tem feito na prática para alavancar o processo de desenvolvimento digital? Dois pontos da resposta de Blanquer chamaram a atenção. Primeiro, o investimento em educação básica, na qual as escolas da periferia têm classes de apenas 12 alunos. Segundo, a França inicia ensino de codificação e programação aos alunos a partir dos 7 anos. “Lá, eles ensinam lógica às crianças. Aqui, discutimos outras coisas. Como vamos conseguir construir o País assim?”.

REPRESENTATIVIDADE: No Fórum Econômico Mundial, realizado em janeiro, em Davos, na Suíça, Marco Stefanini (à esq.) esteve ao lado do professor Felipe Monteiro, da Insead, importante escola de negócios. (Crédito:Divulgação)

Stefanini questiona com um tom de indignação, por saber do potencial brasileiro para assumir o protagonismo das áreas digitais no mundo. Segundo a consultoria IDC (International Data Corporation), as empresas devem investir globalmente US$ 77,6 bilhões em IA até 2022. Uma parcela significativa desse montante transitará pelo Brasil. O faturamento da Stefanini, por exemplo, foi de US$ 3,3 bilhões em 2019, dos quais quase metade foi produzida no Brasil. E o momento da empresa é de novas aquisições, para ampliar o leque de produtos e de criação de tecnologia. A primeira acaba de ser anunciada. A Stefanini comprou a Mozaiko, startup que integra dados em tempo real e utiliza IA para simplificar processos de varejo, como controle de  estoques, ganho de eficiência e melhora da experiência do cliente. Assim, a Stefanini continua fazendo a sua parte. Usando inteligência real para crescer em Inteligência Artificial.

ENTREVISTA – Marco Stefanini
“IA faz equipe, empresa e país mais produtivos”

Marco Stefanini, CEO global (Crédito:Divulgação)


Como a Stefanini enfrentou o ano de 2019?
Tivemos quatro movimentos importantes: consolidação da internacionalização, gestão com foco em controle de qualidade e de pessoas (foram trocados três dos cinco CEOs), transformação digital acelerada e a crise no Brasil, que começa a ter atenuantes. Neste ano, estamos bem preparados. O País começa a respirar. Cresce pouco, mas de maneira sustentável.

E em 2020, qual a expectativa de crescimento?
Em 2019, faturamos 10% a mais no global, chegando a R$ 3,3 bilhões. Destaque para nossa área de ofertas digitais, que cresceu 35%. É um setor que agrega valor e faturamento, com parcerias e produtos próprios. Éramos empresa de serviços. Agora, temos produtos com propriedade intelectual. Temos enfrentado desafios sem perder raiz: base de clientes e visão de longo prazo.

Nesses 32 anos de história, a empresa passou por grandes crises. Qual a pior delas?
Operamos em 41 países. Os mais difíceis são Brasil, Argentina e Itália. O Brasil sempre foi difícil. Além de ser instável economicamente, as regras mudam muito e há insegurança jurídica. Mas tem sempre o lado positivo, que cria o DNA na gente, de resiliência, mais do que resistência. Aí as mudanças doem menos. A crise do governo Collor foi a campeã. O problema da crise atual é que ela é longa e intensa. Outras foram piores, mas esta tem características diferentes. A caída foi forte no início e ela
é longa. Só começamos a retomar o crescimento agora.

No início, a Stefanini teve crescimento orgânico. Depois, teve uma fase de grandes aquisições e, mais recentemente, de compras pontuais. Como será a partir de agora?
Temos de crescer nos países em que já estamos. Vamos acelerar aquisições digitais de maior porte. Não de grandes, porque empresa digital continua pequena, principalmente no B2B. Este ano, teremos umas cinco aquisições, tanto no Brasil quanto no exterior.

Existe uma corrente que propaga que a Inteligência Artificial tira emprego das pessoas. Como o senhor analisa essa questão?
Minha visão é de que a IA faz equipe, empresa e país mais produtivos. Tem substituição do trabalho humano, mas de funções repetitivas. Vai substituir uma parte. Por isso, é tão importante a reeducação da sociedade. Vão se criando novas profissões. O trabalho mais nobre fica para o humano, de situações que ninguém resolveu, de vagas mais qualificadas.