O argentino Ariel Lambrecht estava em Berlim quando usou pela primeira vez um aplicativo para chamar um táxi. O colombiano David Vélez mudou-se para o Brasil e demorou nove meses para conseguir abrir uma conta em um banco. O carioca Marco DeMello tinha construído uma carreira de sucesso na Microsoft e milhões no bolso depois de vender uma empresa de inserção de mídia em tevê a cabo nos Estados Unidos. O baiano Fabrício Bloisi, desde a época que era estudante na Unicamp, nos anos 1990, queria criar uma empresa global de tecnologia. O paulista Marcio Kumruian abriu um puxadinho para vender sapatos femininos e tênis em um estacionamento em frente da Universidade Mackenzie, na zona central da capital paulista. O mineiro Rodrigo Borges resolveu abandonar um emprego seguro no Magazine Luiza com uma única garantia: um guardanapo assinado na cafeteria paulistana Octavio Café.

Esses seis personagens têm muito mais em comum do que se possa imaginar. Todos eles são empreendedores que criaram suas startups a partir de situações inusitadas, de sacadas que ajudaram a vislumbrar oportunidades em mercados pouco explorados ou da persistência típica de obstinados por uma ideia. Lambrecht, por exemplo, é um dos três fundadores do aplicativo de transporte 99 – os outros dois são Renato Freitas e Paulo Veras. Vélez criou a Nubank, uma startup financeira dona de um cartão de crédito roxo que não cobra anuidade. DeMello, depois de mais de 20 anos trabalhando ao lado de Bill Gates nos Estados Unidos, voltou ao Brasil porque vislumbrou que o mercado de smartphones iria crescer aceleradamente para começar a PSafe, que desenvolve aplicativos de segurança. Bloisi resolveu apostar em toques de celular e notícias via SMS no fim dos anos 1990. Hoje, comanda a Movile, dona dos aplicativos de delivery de comida iFood e do infantil PlayKids. Kumruian fechou sua lojinha e apostou no comércio eletrônico em 2007. Agora, ele acaba de protocolar um pedido de abertura de capital na Bolsa de Nova York (leia mais no quadro “As 10 startups mais valiosas do mundo”). Borges, por sua vez, está à frente da Hub Prepaid, uma empresa de soluções de meios de pagamentos, que deve movimentar R$ 10,5 bilhões em 2017. O guardanapo que o fez pedir demissão estava assinado pelo empresário Carlos Wizard Martins e registrava, à mão, os principais termos do aporte que o bilionário faria na empresa.

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As startups desses seis empreendedores já são avaliadas em mais de R$ 1 bilhão (saiba mais sobre elas nas fichas que acompanham essa reportagem). Elas prometem se transformar nos primeiros unicórnios brasileiros, apelido dado pelos investidores às empresas que conseguem atingir o valor emblemático de US$ 1 bilhão (R$ 3,1 bilhões). No mundo, existem 186 empresas iniciantes nessa situação, segundo a consultoria americana CB Insights. Nenhuma delas ainda nasceu no Brasil. A mais valiosa é o aplicativo de transporte americano Uber, cujo valor estimado é de US$ 68 bilhões. Os Estados Unidos são o país com mais unicórnios do planeta, com 97 startups bilionárias. Em seguida, vem a China, com 43. A Índia tem 9 e o Reino Unido, 7. Na América do Sul, há apenas dois unicórnios. A LifeMiles, um programa de fidelidade da companhia aérea Avianca, da Colômbia, e a Decolar, site de turismo online da Argentina.

 

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O que faz de 99, Nubank, Movile, PSafe, Netshoes e Hub Prepaid seriíssimos candidatos a se tornarem o primeiro unicórnio brasileiro? Elas reúnem uma série de características difíceis de encontrar na maioria das startups brasileiras. Em primeiro lugar, foram capazes de atrair os principais fundos de venture capital do mundo ou parceiros estratégicos de peso para investir em seus negócios. A 99, por exemplo, acaba de receber US$ 100 milhões da Didi Chuxing, a empresa que venceu o Uber na China. A Nubank foi a primeira empresa – e ainda a única – a conseguir investimento da Sequoia no Brasil, o mesmo fundo que apostou em Apple, Google, YouTube, Airbnb, Instagram e WhatsApp. A Movile tem entre seus sócios nada menos que o empresário Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil – ele é um dos cotistas do fundo Innova, que investe na empresa. A Hub Prepaid conta com a ajuda – e o dinheiro, evidentemente – de Carlos Wizard Martins, um empreendedor que, depois que vendeu sua escola de inglês Wizard por quase R$ 2 bilhões, investiu na rede de alimentos saudáveis Mundo Verde, na escola de futebol Ronaldo Academy e nas marcas esportivas Rainha e Topper.

Essas credenciais isoladas, no entanto, não seriam suficientes para transformá-las em unicórnios. Várias empresas captam muitos recursos e depois sucumbem pelo caminho. Mas ter dinheiro, não há dúvida, ajuda bastante. Observe o exemplo da Movile. Fundada em 1998, em Campinas (SP), ela passou boa parte de sua primeira década avançando vagarosamente. Sua sorte começou a mudar, quando os aportes aconteceram. Desde 2014, já recebeu mais de US$ 136 milhões do fundo sul-africano Naspers, do brasileiro Innova e da Finep. A partir daí, ela saiu às compras. Nos últimos 28 meses, foram 15 aquisições, como os serviços de geolocalização Apontador e Maplink. O aplicativo de delivery iFood dominou o mercado brasileiro por conta da consolidação de mercado promovida pela Movile. Foram nove negócios que deram ao app uma fatia de 80% do mercado brasileiro de entregas de comida.Hoje, o iFood faz três milhões de entregas por mês, conta com 15 mil restaurantes e está em aproximadamente 300 cidades do Brasil, Colômbia, Argentina e México. “Sou uma mistura de Google com Ambev”, afirma Fabrício Bloisi, CEO da Movile. Da cervejaria, Bloisi se inspira na obsessão por resultados. Da parte do sistema de busca, ele se espelha na Alphabet, holding que controla uma série de empresas. A Movile, em certo sentindo, adotou estratégia similar ao gigante de Mountain View ao comprar fatias ou até mesmo o controle de diversas startups. Sua carteira inclui, além do iFood, o aplicativo infantil PlayKids, o de logística Rapiddo, um Uber dos motoboys, e a plataforma de eventos online Sympla, entre outros ativos.

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OPERAÇÕES INTERNACIONAIS Ter dinheiro ajuda também na expansão internacional. “O mercado americano é muito maior do que o brasileiro”, diz Romero Rodrigues, cofundador do Buscapé e sócio do fundo Redpoint e.ventures. “Por isso é mais fácil chegar ao valor de US$ 1 bilhão.” Sair do Brasil pode ser, então, uma alternativa para aumentar receita e impulsionar o seu valor. A PSafe, por exemplo, montou operações nos Estados Unidos e no México. Dos 22 milhões de clientes que usam mensalmente seus aplicativos de segurança, um milhão são mexicanos e quatro milhões, americanos. “O foco é dominar o mercado americano”, diz DeMello. “É uma tacada de alto risco, mas essa é a natureza de toda startup.” O último aporte, de US$ 30 milhões, foi quase todo consumido nesse objetivo. A Movile também atua em sete países. Além do Brasil, está nos Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Peru, México e França. Seus aplicativos já alcançaram 100 milhões de pessoas no mundo. A meta é chegar a um bilhão até 2020. “Queremos ser uma empresa global”, afirma Bloisi. “Quero ser comparado com Google, Facebook e Apple.”

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Mas também não adianta avançar para o mercado externo só para cravar bandeiras em outros territórios. Às vezes, dominar o seu pedaço pode ser mais importante. A 99, por exemplo, surgiu em uma época em que seus rivais estavam com muitos recursos. A Easy tinha o fundo alemão Rocket Internet por trás. A SaferTaxi era bancada pelo argentino Kaszek. Sem dinheiro, a solução foi focar exclusivamente em São Paulo. “Foi um dos nossos maiores acertos”, diz Lambrecht. Com isso, a empresa pôde desenvolver um relacionamento mais próximo aos taxistas, entendendo suas necessidades, o que foi essencial para o desenvolvimento do aplicativo. A 99 só entrou em outras praças quando dominava a capital paulista e já contava com o aporte dos fundos Monashees e da Tiger Global. Hoje, está em 550 cidades, conta com 140 mil taxistas e motoristas profissionais cadastrados e conquistou 10 milhões de clientes. Agora, com a Didi Chuxing, o plano é investir os recursos no serviço Pop, uma espécie de Uber da 99, intensificando a disputa com a startup mais valiosa do mundo. Hoje, eles brigam em São Paulo e no Rio de Janeiro. Até o fim do ano, a meta é estar em 10 cidades.  Sair do Brasil está nos planos, mas mais para frente. “A Didi Chuxing enxergou que dominamos o Brasil e que poderíamos nos expandir para outros mercados da América Latina”, afirma Lambrecht.

O empreendedor pode ter dinheiro, pode sair comprando empresas para consolidar mercados, pode até mesmo avançar internacionalmente. Mas nada – nada mesmo – é tão importante quanto à obstinação por construir um negócio que gere valor, sem ceder as tentações de ficar rico rapidamente. “Um dos motivos pelo qual o Brasil não tem um unicórnio é que muitos empreendedores vendem seu negócio muito cedo”, diz um investidor de startups. “Eles recebem propostas de US$ 50 milhões e não pensam duas vezes.” Não foi o caso de Rodrigo Borges, CEO da Hub Prepaid. No ano passado, ele diz que recebeu uma proposta de R$ 1 bilhão, mas recusou a oferta. “Acredito que a empresa vai valer muito mais no futuro”, afirma Borges. A Hub Prepaid é uma holding que reúne seis empresas voltadas a meios de pagamentos e cartões. Ela é a mais desconhecida das grandes startups brasileiras. Mas isso não é nenhum problema. “Somos um bom coadjuvante”, afirma Borges. “Estamos por trás dos meios de pagamento. Por isso, ninguém nos enxerga.” A 99 ilustra essa estratégia de ficar longe dos holofotes. Seu cartão pré-pago para pagar as corridas dos taxistas funciona com a tecnologia da startup. “Fazemos toda a operação financeira”, diz Borges. “A 99 não funciona sem a gente.” A Hub Prepaid tem 300 clientes, entre eles a Caixa Econômica Federal e o Mercado Livre.

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Quem também teve que ser obstinado para levar adiante sua ideia foi o colombiano David Vélez. Quando veio morar no Brasil, sua missão era encontrar startups para o fundo americano Sequoia. Mas depois de muitas pesquisa, nenhuma das startups que ele analisou foi escolhida para receber investimento. Ele, então, resolveu ser empreendedor. Sua ideia surgiu da dificuldade de abrir uma conta bancária, mas Vélez diz que também olhou para a lista das empresas mais valiosas do Brasil e observou que a maioria era de bancos. “Então, vou criar um banco”, pensou. Muitos investidores fizeram restrição, dizendo que o mercado era altamente regulado e que os peixes grandes do setor iriam esmagá-lo. Mas, mesmo assim, Vélez não desistiu e conseguiu que a Sequoia apostasse em sua startup. A empresa nasceu em 2013, mas o seu cartão de crédito roxo só foi lançado um ano depois. Desde então, sete milhões de pessoas fizeram pedido para recebê-lo – a startup não informa o número de clientes. Há ainda uma fila de espera de 500 mil pessoas. Sem revelar detalhes, a Nubank tem planos de avançar para outros serviços. “O cartão é só o começo”, afirma Vélez.

Essa é outra característica fundamental: evoluir, adaptar e até mesmo mudar seu modelo de negócio. A PSafe, por exemplo, começou apostando na plataforma Windows. Em 2014, mudou para o Android, do Google. Só assim conseguiu deslanchar. A Movile era uma empresa completamente diferente quando surgiu nos anos 1990. A 99 começou com táxis e agora quer atuar na área de mobilidade urbana, o que expande muito sua atuação. A única coisa que os empreendedores visionários não mudam é a capacidade de sonhar grande e acreditar que chegarão lá.

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Netshoes: rumo à bolsa dos EUA

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Poucas startups brasileiras captaram tantos recursos quanto a varejista online de artigos esportivos Netshoes. No total, foram US$ 215 milhões em rodadas de investimentos lideradas por Tiger Global e Riverwood Capital Partners. Com tanto dinheiro, a empresa expandiu-se de forma acelerada, abriu operações no México e na Argentina e entrou em novas áreas, como a de moda com a marca Zattini. Agora, ela pode ser a primeira companhia de comércio eletrônico do País a fazer um IPO na Bolsa de Nova York (Nyse).

A Netshoes protocolou seu pedido de abertura de capital na quinta-feira 7. Se tudo der certo, ela pode alcançar um valor de mercado estimado em US$ 1,2 bilhão, segundo estimativas divulgadas pelo site Brazil Journal. Se conseguir, a Netshoes seria, oficialmente, o primeiro unicórnio brasileiro, uma referência às startups que ultrapassam a cifra bilionária. Os fundadores da empresa, Marcio Kumruian e Hagop Chabab, são donos de 27,8% do capital da Netshoes, segundo documento apresentado a SEC, o órgão regulador americano.

A Tiger Global tem 37,38%. A Archy, com 10,6%, a Clemenceau Investments, 8,8% e a Riverwood, com 8,4% complementam a lista de acionistas. No ano passado, a Netshoes faturou R$ 1,7 bilhão. Mas teve prejuízo de R$ 151,9 milhões. Apesar de não ter alcançado o lucro, a companhia tem trabalhado para racionalizar sua operação. Kumruian, que comanda a empresa, adotou estratégias para reduzir a sangria de caixa. A Netshoes renegociou prazos e condições comerciais com seus fornecedores, em acordos de longa duração.

A startup mudou também sua política de fretes gratuitos. Agora, o consumidor paga pelo serviço, caso queira receber o item na data da compra. “Ninguém aqui quer construir uma empresa que não para em pé”, disse Kumruian, em entrevista à DINHEIRO, no ano passado. Até agora, a Netshoes sobreviveu graças ao dinheiro dos fundos de venture capital. Se conseguir abrir o capital terá de prestar contas para um número muito maior de investidores que talvez não tenham a mesma paciência de Tiger Global e Riverwood. Procurada, a Netshoes não quis se pronunciar.