Aos poucos o mercado da Cannabis medicinal sai do obscurantismo e ganha espaço no Brasil. Bem aos poucos. Apenas em dezembro a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou a venda de produtos à base da planta em farmácias, mas veta seu cultivo, inclusive a empresas interessadas em desenvolver medicamentos. No Canadá, o uso medicinal existe há 19 anos. Esse tipo de gap pode significar ao País dois dramas. Postergar e encarecer os remédios para que pacientes crônicos sejam melhor tratados é o primeiro. O outro é deixar de injetar alguns bilhões à economia. Relatório da empresa internacional de consultoria New Frontier Data aponta que o mercado brasileiro pode movimentar R$ 4,7 bilhões ao ano com a liberação para fins medicinais. Nos Estados Unidos, ele girou US$ 13,6 bilhões em 2019 (cerca de R$ 68 bilhões), de acordo com dados do National Institute for Cannabis Investors.

Ainda que lentas, as engrenagens começam a se mover. A aceleradora de startups The Green Hub reuniu, em um evento em São Paulo, uma centena de pessoas, entre especialistas, investidores e curiosos, além de 13 startups. A importância do encontro não se limita ao surgimento de novas empresas. Trata-se também do bem-estar e da saúde de cerca de 3 milhões de brasileiros que sofrem com dor crônica, transtornos de ansiedade, câncer, autismo, Alzheimer, Parkinson, artrite e epilepsia, por exemplo. Nessas situações há farta literatura médica que recomenda tratamento à base de canabidiol (CBD) para aliviar os piores sintomas. A substância, extraída da maconha, não tem propriedades psicoativas.

Pelo fato de a maconha não ser legalizada no Brasil, os eventos anteriores se limitavam a palestras informativas, pois não havia muito o que mostrar. Desta vez foi diferente porque funcionou como uma verdadeira rede de contatos. No primeiro dia assistiram a palestras sobre o setor durante o Cannabis Thinking. A continuação recebeu o nome de Demo Day, cujo objetivo foi reunir as startups. Seus representantes fizeram rápida explanação sobre produtos e serviços que desenvolveram para operar no promissor mercado de Cannabis. A abertura teve o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, considerado um ator importante na luta para liberação mais ampla da maconha no País. “Temos de acabar com a ideia equivocada de que estamos disseminando o mal”, disse Fernando Henrique. “É preciso educar as pessoas e convencer o governo de que a regulamentação tornará melhor a vida de muita gente com doenças crônicas, tratáveis a partir de substâncias extraídas da Cannabis.”

“Essas resoluções abrem o mercado a empresas que vão trazer medicamentos em maior volume. Isso tornará o produto mais acessível” Marcelo Vita Grecco, CEO do The Green Hub (Crédito:Marcelo De Vita Grecco)

Talvez não seja exagero lembrar que todo medicamento é uma droga e saber olhar para seus benefícios fez já cerca de 50 países legalizarem a Cannabis medicinal. Em quatro deles, o uso recreativo é permitido: Canadá, Uruguai (proibida a estrangeiros), África do Sul e Geórgia (nos dois últimos a venda é proibida, o usuário pode cultivar e consumir). Nos Estados Unidos, cada um dos 50 estados goza de autonomia para decidir. Em 11 deles o uso medicinal e recreativo é permitido. O maior de todos, a Califórnia, com 39 milhões de habitantes, é um. Em outros 22 somente o uso medicinal é legal — Nova York está nesse grupo. Outros nove estados decidirão neste ano sobre a legalização.

US$ 30 BILHÕES O mercado investidor vê 2020 como ano chave. Segundo a New Frontier Data, nos estados americanos onde a maconha está legalizada foram movimentados US$ 6 bilhões com produtos medicinais e outros US$ 7,6 bilhões com outras linhas de produtos relacionadas ao segmento, em 2019. A expectativa é de que este valor chegue, respectivamente, a US$ 13,1 bilhões e US$ 16,6 bilhões em 2025 – perto de US$ 30 bilhões, no total. Por isso estados pressionam para a aprovação de legislação sobre o tema.

“Nossa agenda está lotada. Para se ter ideia, temos vaga só para maio. E o custo é alto, a medicação fica em torno de R$ 1,5 mil para três meses” Marcelo Sarro, diretor de marketing do Cec. (Crédito:Marcelo Sarro)

Os resultados para a saúde pública também são altamente positivos. No estado do Colorado, 93% dos pacientes com dor crônica em tratamento e que usam medicamento com princípios ativos da Cannabis aprovaram os resultados obtidos. No Oregon a aprovação é de 89% e em Nevada 88%. Na média, envolvendo outros entes da federação, a aprovação é de 73%. No Brasil as discussões foram acaloradas. Há quem tema que a autorização para uso medicinal sirva como porta de entrada para a legalização do plantio, como dizia o então ministro da Cidadania, Osmar Terra. Do outro lado, o medo era de que o governo atuava de acordo com os interesses da grande indústria farmacêutica. O fato é que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou duas resoluções (a 327, de dezembro de 2019, e a 335, de janeiro de 2020) que deram um norte ao segmento. A RDC de 2019 criou a categoria de “produtos à base de Cannabis”, o que facilita o registro. A de 2020 torna o processo de importação mais ágil e começou a valer neste mês. Antes, a importação só podia ser feita pelo paciente. Agora, empresas também podem trazer e as farmácias (menos as de manipulação) poderão oferecer os remédios em suas prateleiras.

“Essas resoluções definem as substâncias autorizadas e suas proporções, além de abrir o mercado às empresas que vão trazer medicamentos em maior volume. Isso tornará o produto mais acessível”, afirma Marcelo de Vita Grecco, co-fundador e CEO do The Green Hub. Antes das resoluções, apenas 7,8 mil pacientes tinham autorização para importar tais medicamentos e no País todo cerca de 1 mil médicos (psiquiatras, neurologistas e neurocirurgiões) estavam autorizados a prescrever receitas.

“Temos quatro clínicas como clientes, mas queremos focar nos pacientes. Nossa meta é obter 50 mil downloads até o final de 2020” Annalidia de Moraes, diretora executiva da Tria. (Crédito:Annalidia de Moraes)

O fato de o plantio da maconha ainda ser proibido no Brasil dificulta um pouco a formatação dos empreendimentos. A estratégia é pensar em serviços e produtos que possam se disseminar globalmente. Um exemplo é a Tria, do Rio de Janeiro, que desenvolveu uma plataforma para auxiliar pacientes com doenças crônicas a organizar e acompanhar todo o tratamento de forma a não depender única e exclusivamente das informações constantes na ficha que fica em poder do médico ou da clínica. A diretora executiva da Tria, Annalidia de Moraes, explica que o software pode ser comercializado para clínicas e pacientes, e possibilita compartilhar as informações do prontuário automaticamente. Para clínicas o programa instalado custa R$ 5 mil, mais R$ 0,70 por arquivo inserido e R$ 700 de mensalidade. Para os pacientes não há custo inicial. Eles terão espaço de 100 Mb gratuitamente. Se for necessário mais espaço na nuvem, há dois planos: um ao custo de R$ 9,15 por mês e outro familiar, a R$ 14,65. “Temos quatro clínicas como clientes, mas queremos focar nos pacientes. Nossa meta é obter 50 mil downloads até o final de 2020”, afirma Annalidia.

O Centro de Excelência Canabinoide (CEC) tem tanto a finalidade de atendimento clínico de pacientes como a de funcionar também como centro de informação e treinamento. Tem uma clínica em São Paulo, equipe médica especializada e plataforma com cursos on-line para médicos e pessoas em tratamento. O CEC também oferece serviços gratuitos a entidades parceiras. O diretor de marketing da empresa, Marcelo Sarro, disse que o empreendimento iniciou com investimento de R$ 300 mil e mais recentemente recebeu aporte de R$ 2 milhões. “Nossa agenda está lotada. Para se ter ideia, temos vaga só para maio”. Sarro falou que o custo do tratamento ainda é alto no Brasil pelo fato de tudo ser importado. “A medicação fica em torno de R$ 1,5 mil para três meses de uso, mas ainda há custos com consultas, deslocamentos.”

“As camisetas e relógios já estão sendo fabricados no Brasil por trabalhadores da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que estavam desempregados” Jeferson rodrigues, sócio da Hempions. (Crédito: Jeferson Araujo )

CIÊNCIA À FRENTE A medicina tem sido a maior fomentadora do mercado da maconha. Isso porque saúde e qualidade de vida das pessoas têm o apelo necessário para que a sociedade deixe de ver a Cannabis apenas como uma planta narcótica e passe a enxergar toda a sua utilidade e versatilidade. Com isso, surgem oportunidades em outros segmentos, não só da área de saúde. “A maconha oferece oportunidades multisetorias. Com ela é possível fabricar roupas, xampus, cosméticos, medicamentos”, afirma Marcelo Vita Grecco. A austríaca Hempions, representada no evento pelo sócio brasileiro, Jeferson Araújo Rodrigues, foi criada há três anos, tem dez funcionários e atua no ramo têxtil. Os planos para o Brasil são obter cerca de US$ 100 mil por meio de crowdfunding e vender camisetas (R$ 180) e relógios (R$ 350) feitos com fibra de cânhamo, uma espécie de cannabis. “As camisetas e os relógios já estão sendo fabricados no Brasil por trabalhadores da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que estavam desempregados”, diz Rodrigues. Parte da eceita será usada para ampliar a produção, hoje artesanal, e investir em marketing para ganhar espaço no mercado nacional a partir de 2021. Anote para não esquecer: Cannabis é o negócio da vez.