Uma das armas usadas por governos e empresas para o enfrentamento à pandemia de coronavírus é a tecnologia. Ferramentas de geoprocessamento, geolocalização, georreferenciamento e sensoriamento remoto são utilizadas, principalmente, para mapear a movimentação de pessoas durante o período de isolamento social, uma das ações mais eficazes para evitar a disseminação da Covid-19. O emprego desses dados e informações coletados a partir do rastreamento a favor da saúde pública reacendeu a polêmica sobre a privacidade do cidadão. No centro do debate está o questionamento sobre até que ponto órgãos públicos e companhias privadas podem saber e, especialmente, divulgar por onde o indivíduo anda e frequenta. Iniciativas de uso da tecnologia para monitoramento têm sido adotadas pelos governos de Santa Catarina, São Paulo e prefeituras de Brasília, Rio de Janeiro e João Pessoa, por exemplo. A discussão ganhou peso quando o governador de São Paulo, João Doria, começou a divulgar dados sobre o deslocamento das pessoas durante a quarentena a partir de um acordo, sem custo para o estado, com as operadoras de telefonia celular Claro, Oi, Tim e Vivo, para “identificar os locais onde as pessoas estão e onde há concentração”. O Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi) é feito por rastreamento e georreferenciamento dos aparelhos celulares. Segundo o governo estadual, os dados fornecidos “não desrespeitam a privacidade de cada usuário”. No momento, há acesso a dados referentes a 104 cidades paulistas com mais de 70 mil habitantes.

COLAPSO Após análise dos dados de telefonia móvel que indicam as tendências de deslocamento o Comitê Executivo do Governo Covid-19 mensura a eficácia da quarentena. Nas duas últimas semanas, os índices de isolamento em São Paulo ficaram entre 47% e 59% da população. O ideal, segundo especialistas, é chegar a 70% para diminuir a propagação do vírus e evitar colapso no sistema de Saúde.

Com a divulgação das informações, algumas pessoas reclamaram nas redes sociais. E o embate já foi parar na Justiça. Em recente decisão, o desembargador Evaristo dos Santos, do Tribunal de Justiça de São Paulo, concedeu liminar a um advogado para barrar o monitoramento de seu telefone. No processo, o argumento foi de que o rastreamento de seus dados e de sua localização “equipara-se à restrição imposta ao condenado criminal pela tornozeleira eletrônica”. Para o juiz, foi afrontado, em tese, o direito à intimidade e à privacidade. O Ministério Público Federal de São Paulo também está de olho no uso das informações pelo governo. Em ofício, pediu esclarecimentos sobre o acordo para “analisar se há potencial violação de direitos fundamentais da pessoa humana”. Trata-se de um banco de dados valioso, usado comercialmente pelas companhias de telefonia celular. Exemplo disso é a Prefeitura de Salvador, que contratou a Oi para saber de onde eram os turistas que visitavam a cidade no Carnaval de 2019, o que possibilitou ações mais adequadas de logística, recepção e marketing.

NA LEI A advogada Aline Zinni, especialista do Escritório Kasznar Leonardos em Proteção de Privacidade de Dados, Direito Digital e IP, afirma que é legal o uso de dados de telefonia e de outras tecnologias disponíveis no combate à proliferação da Covid-19. Ela explica que a informação sobre o deslocamento dos aparelhos celulares pode ser apurada com base na triangulação de antenas. “Assim, não haveria compartilhamento de dado exato de localização, somente uma localização aproximada (raio de 200 metros) e não seriam compartilhados os dados capazes de identificar um indivíduo”, afirma. Ela cita a doutrina e jurisprudência do parágrafo XII, do artigo 5º, da Constituição Federal, que protege a inviolabilidade da comunicação que contenha dados, mas não os dados em si.

Aline Zinni coloca como exemplo uma carta enviada pelo Sedex com código de rastreamento. “O conteúdo permanece em sigilo, protegido constitucionalmente, ainda que os dados de rastreamento sejam publicados”, diz. A especialista observa ainda que a localização não poderia ser divulgada se fosse identificada a pessoa. “Ao tratamos de dados anonimizados, deixa de ser pessoal.” Portanto, não estariam sujeitos às restrições impostas pela lei, segundo a advogada.

RASTREAMENTO O que o corre no Brasil ainda está bem distante de outros países, como Israel, que tomaram medidas mais drásticas de controle da população por meio das informações dos celulares. O governo israelense autorizou suas agências de segurança a rastrear os dados de telefones de pessoas com suspeita de coronavírus, para saber se estão ou não cumprindo as regras de quarentena. Além dos dados de telefonia celular, outras tecnologias de monitoramento estão sendo usadas para combater o coronavírus. O geoprocessamento, por exemplo, permite transformar os dados em mapas. Isso ajuda os órgãos públicos a assimilar melhor as informações para tomada de decisões mais rápidas e assertivas.
Cada caso de pessoa que apresenta resultado positivo para Covid-19, se recupera ou vai a óbito é transformado em estatística para, em seguida, abastecer banco de dados de softwares que convertem os números em mapas. Um dos sistemas mais famosos do momento é o usado pela Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, que tem se destacado pela compilação de dados referentes à pandemia. O mapa tem sido sucesso e já alcançou a marca de 1 bilhão de acessos em um único dia. Foi feito na plataforma ArcGIS.

No Brasil, a empresa Imagem Geosistemas é a distribuidora exclusiva dessa ferramenta para a norte-americana Esri, desenvolvedora do ArcGIS. Atualmente, produz mapas e análise espacial para as cidades de Brasília (DF), João Pessoa (PB), Rio de Janeiro (RJ), Varginha (MG), municípios do Rio Grande do Sul e o governo de Santa Catarina para analisar e promover políticas públicas de enfrentamento ao coronavírus. Segundo Eneas Brum, presidente do conselho do Grupo Imagem, que agrega a Imagem Geosistemas e outras sete empresas, o suporte tecnológico de geoprocessamento melhora a leitura dos dados, o que tem auxiliado as autoridades em suas ações. “As informações são passadas aos órgãos governamentais totalmente descaracterizadas, sem qualquer identificação”, afirma.

“O uso de sensoriamento remoto e geolocalização não atuam diretamente no combate à pandemia, mas são capazes de gerar informações importantes” Leonardo Barros HEX tecnologia (Crédito: Mariana Bittencourt)

GEOESPACIAL Imagens de satélites e sensoriamento remoto são outras ferramentas presentes no monitoramento humano neste momento de combate ao coronavírus. São imagens mais distantes da superfície terrestre captadas do espaço, mas com altíssima resolução. Com elas, é possível detectar aglomeração de pessoas ou saber se alguém infectado está em um asilo (o que demandaria uma ação mais incisiva dos órgãos públicos) ou em um sítio (o que resultaria apenas na permanência em isolamento social do paciente, por exemplo). “Fornece aos gestores visualização rápida de determinadas áreas, de forma ágil, principalmente em um território extenso como o do Brasil, num momento em que os recursos estão escassos”, afirma Leonardo Barros, diretor-executivo da Hex, empresa de tecnologia geoespacial que ajudou a Polícia Federal a identificar o navio suspeito do vazamento de petróleo que atingiu a costa marítima do País em 2019. Atualmente, presta serviço ao Ibama e a companhias do setor elétrico.

IRÃ Essa tecnologia foi usada para contestar as informações passadas pelo Irã a respeito das mortes por Covid-19 no país. A partir de imagens do espaço foi possível observar valas sendo abertas em velocidade incomum para enterrar vítimas no complexo de Behesht-e Masoumeh, em Qom, cerca de 130 quilômetros ao sul de Teerã, onde o governo não havia confirmado nenhuma morte antes de as imagens serem divulgadas. “O sensoriamento remoto e as imagens geoespaciais não atuam diretamente no combate à pandemia, mas são capazes de gerar informações importantes sobre a realidade do campo estudado”, diz Barros.

Seja por geoprocessamento, geolocalização, georreferenciamento ou sensoriamento remoto, fato é que o brasileiro está sendo observado a todo instante, e faz tempo. O Waze sabe seus caminhos. O Facebook conhece suas preferências. O Google identifica seus interesses. Aplicativos acompanham seus hábitos de consumo. Sabem quando, onde e o que você come. É uma situação que não tem mais volta. Enquanto seus dados e informações são usados, seja comercialmente ou para auxiliar em um estado de calamidade pública, sorria, você está sendo monitorado!

ARTIGO
Os impasses do adiamento da LGPD

A convulsão na economia provocada pela pandemia da COVID-19 está levando muitas empresas a acreditarem que o adiamento do prazo da entrada em vigor Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) pode ser um bom negócio, aliviando suas equipes da tarefa de adequação às novas regras.

O Senado aprovou a entrada em vigor da lei, que seria em agosto deste ano, para janeiro de 2021. As multas e sanções seriam aplicadas somente a partir de agosto de 2021. A matéria ainda precisa ser apreciada pela Câmara do Deputados. Em uma nota técnica enviada ao Congresso, o Ministério Público Federal defendeu que a LGPD entre em vigor no dia 20 de agosto, como previsto pela legislação.

Antes da pandemia já se cogitava o adiamento pelo fato de muitas empresas não estarem prontas para cumprir a legislação. É verdade que muitos são os fatores que podem levar uma empresa a não estar convicta sobre ter ou não todos os processos ajustados. Assim com é verdade que a obrigação de manter as informações pessoais de clientes internos e externos em segurança é uma demanda que vem de longo tempo. As empresas não podem se apoiar no inesperado para justificar o fato de não estarem preparadas.

Não importa se teremos ou não o adiamento. Pequenas ações lideradas pelas equipes de TI podem ajudar. Primeiro, é preciso conhecer a LGPD, constituir uma equipe multidisciplinar e definir o Encarregado de Proteção de Dados. Depois, mapear e identificar os dados de clientes em poder da organização. A partir daí, definir as necessidades para tratamentos dos dados e as ferramentas de softwares de apoio. Os últimos passos são executar das normas, monitorar as ações e gerar relatórios
de conformidade.

As equipes de TI devem promover uma auditoria de dados e de aplicações de software na rede corporativa a partir do uso de ferramentas de software especialmente desenhadas para essas atividades. Com a auditoria é possível verificar quais aplicações de software estão desatualizadas e podem apresentar vulnerabilidade de segurança. Ela também permite identificar o status da integridade dos dados a partir do controle de documentos, grupos de usuários, senhas e privilégios, para assim avançar no cumprimento da LGPD.

Trata-se de um procedimento inicial, porém vital para reportar à autoridade de dados as medidas que foram adotadas para o cumprimento da lei. Quando a LGPD entrar em vigor — seja em agosto deste ano ou depois — a empresa certamente terá as alegações apropriadas em caso de auditoria por parte dos agentes reguladores.