Vou chamar de Sociedade 4.0. Ela definirá o momento em que a interação homem máquina se dará de forma plena. E trará um suposto paradoxo como definidor na próxima geração de inteligência computacional: a inclusão de processos, ferramentas e conceitos vindos das chamadas Ciências Humanas dentro do mundo da tecnologia. A combinação de quatro fatores levará a isso de forma urgente – a) máquinas cada vez mais autônomas e aperfeiçoadas + b) uso maciço e universalizado da internet + c) conexões de alta qualidade + d) soluções disruptivas para todas as áreas profissionais, da advocacia à medicina. Viveremos de forma acelerada e multiplicada uma junção ainda incipiente, a que reunirá em times de trabalho programadores com filósofos, cientistas da computação com psicólogos. Uma transversalidade que vai exigir desses profissionais um equilíbrio ainda maior de seus hard skills com seus soft skills.

A questão-chave nesse novo cenário será: empresas, escolas e, especialmente, governos estarão preparados? Penso que majoritariamente não. A preocupação, que ainda passa longe das discussões políticas nacionais, ganhou sua primeira chancela universal há pouco mais de oito meses. No fim de novembro do ano passado, a Unesco divulgou a versão final de um estudo intitulado Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial. No documento de 44 páginas são colocadas as principais preocupações em relação ao surgimento de soluções de inteligência artificial que amplifiquem desigualdades ou reduzam oportunidades. Entre as recomendações está a de que os Estados membros signatários “se envolvam com todas as partes interessadas, incluindo empresas, para garantir que eles desempenhem seus respectivos papéis na implementação das Recomendação … a todos os atores da sociedade envolvidos em tecnologias de IA para que seu desenvolvimento e uso sejam guiados tanto pesquisa por científica sólida quanto análise ética”.

Extrema vive boom, vira berço do e-commerce e enfrenta déficit habitacional

Antecipa-se aqui um tema decisivo na nova economia. Com inteligência artificial sendo fator de competição decisivo, e base de soluções algorítmicas que hoje movem não apenas a engrenagem publicitária digital e o e-commerce, mas também para onde caminha a pesquisa de medicamentos, por exemplo, dominar a IA é liderar a economia global. Mas não só. Cada vez mais esse tipo de solução é usado em temas variados e complexos como segurança pública, processos de seleção e contratação em empresas e contratação ou mesmo acesso a universidades. Num livro seminal sobre o assunto, Algoritmos de Destruição em Massa (Editora Rua do Sabão, 2021), que o Financial Times definiu como “um manual para o cidadão do Século 21”, a autora, a matemática e cientista de dados Cathy O’Neil, diz o quanto os chamados vieses levam a decisões equivocadas usando-se bid data. Ela diz, em essência, que os modelos usados atualmente são não regulamentados e paradoxalmente incontestáveis, mesmo quando estão errados. O que é assustador.

Encarar esse desafio de levar conceitos ético-filosóficos à tecnologia de ponta será o desafio da nova sociedade, a Sociedade 4.0. A 1.0 foi todo o tempo até existir uma tecnologia submissa ao homem, capaz de facilitar ou acelerar o que o homem poderia fazer. Durou basicamente até o Renascimento. Os ‘hardwares’ eram instrumentos de uso cotidiano funcional: um arado, uma carroça, uma canoa. A Sociedade 2.0 seria, nesta minha classificação arbitrária, a que surge com a prensa de Johannes Gutenberg e faz nascer a sociedade da comunicação. Nasce depois a Sociedade 3.0, iniciada com a Revolução Industrial, continuada com as invenções do Século 20 – na medicina, nas comunicações, na aviação, na internet – e aqui, as tecnologias (as máquinas, os medicamentos) já faziam coisas que o homem não faria. A Sociedade 4.0 será a que vai obrigar a interação plena homem-máquina. E essa relação só terá seus atritos reduzidos ou eliminados com conhecimentos típicos do universo ético-filosófico.

Em pouco tempo o mercado de trabalho não vai apenas ter um gap de profissionais da tecnologia. Vai buscar desesperadamente filósofos, psicólogos e cientistas sociais. Eles serão os fluidos das novas engrenagens.