Tenho acompanhado com interesse a introdução de conceitos originariamente associados ao universo filosófico e existencial no âmbito corporativo. Mês passado escrevi sobre a apropriação de termos como “propósito” e “autoconhecimento” no universo da gestão com pessoas, problematizando a tendência de uma utilização muitas vezes rasa de tais noções. Neste ínterim, soube, por meio de matéria altamente propalada nas redes sociais, da criação de um novo cargo de liderança que anda sendo adotado por algumas empresas: o CHO (Chief Happiness Officer) – ou, em português, Chefe de Felicidade.

Confesso que imaginar um “Chefe de Felicidade”, ainda mais no trabalho, soa-me um tanto estranho e contraditório. É claro que estou simplificando e tomando o termo numa perspectiva talvez um tanto fundamentalista e cômica: “Gente, o CHO chegou! Todo mundo feliz! Parem de reclamar e comecem a sorrir, se não quiserem perder o emprego!” Lendo sobre o assunto, percebe-se que a intenção não é essa, mas sim a de se propor ações e estratégias que promovam um aumento do “nível de felicidade” na empresa. Porém, apesar de toda boa vontade, ainda me soa problemático, por exemplo, medir ou mesmo fomentar felicidade.

Felicidade é palavra de origem latina, derivada do adjetivo felix, que está diretamente associado à ideia de fertilidade e que ainda se relaciona ao prazer que um bebê sente ao mamar no seio da mãe. Neste sentido, na tradição ocidental, felicidade se liga a sensação de bem-estar e saciedade. Entretanto, na outra grande raiz da nossa civilização, que é a grega, a palavra que designa felicidade é eudaimonía, que, originalmente, significava ter tido a sorte de possuir um “espírito” ou “daimon”, um “gênio-guardião” bom e favorável, que garantia uma boa sorte e uma vida próspera e agradável. Ou seja, para os gregos, a felicidade está mais associada a uma atitude de relação com algo mais profundo que habita dentro de nós do que com uma sensação prazerosa derivada de uma situação próspera e bem-aventurada.

Esta perspectiva “eudaimônica” da felicidade foi exemplarmente exposta por Platão em sua “Apologia de Sócrates”, narrativa literário-filosófica que relata o julgamento de seu mestre Sócrates, pai da filosofia antropológica, acusado pelos poderosos de Atenas de subverter os jovens da cidade com seu método indiscreto e inconveniente de questionar todas as coisas, principalmente as mais inquestionáveis. Por causa desse comportamento, Sócrates foi condenado a tirar sua própria vida, ingerindo cicuta, um veneno mortal. Mas não julguem que os líderes atenienses fossem assim tão cruéis e implacáveis. Eles ofereceram a Sócrates a possibilidade de se livrar da pena capital, caso concordasse em abrir mão de sua vocação, cessando suas abordagens questionadoras frente aos cidadãos da grande polis. Também lhe foi dada a opção do exílio, para viver uma vida tranquila e “feliz”. Sócrates, entretanto, sem quase hesitar, prefere o shot de cicuta, pois, segundo ele, a morte, com a possibilidade de continuar sendo ele mesmo no mundo das almas, era preferível a essa “felicidade” tranquila da aposentadoria ou do exílio. Isso porque, segundo o próprio pai da dialética, só havia uma maneira de ser feliz: a de seguir e obedecer ao que lhe ditava o seu “daimon” – o seu “gênio” ou “espírito” que lhe soprava o que devia e não devia fazer desde as profundezas da sua consciência, do seu coração. Penso que refletir sobre a lição de Sócrates seria altamente recomendável antes de instituirmos uma Chefia de Felicidade nas empresas. De que felicidade, afinal, estamos falando?